A Brotéria está a celebrar 120 anos de existência. Quando em 2002 celebrou o seu primeiro centenário, o filósofo Eduardo Lourenço escrevia no prefácio do volume comemorativo que a Brotéria, no seu permanente esforço de “aggiornamento”, procura esposar o “espírito do tempo” sem ceder a ele.
Os 120 anos da Brotéria ficarão também assinalados com a partida do seu penúltimo diretor, António Vaz Pinto SJ (1942/2022), no passado dia 1 de julho, um mês após completar oitenta anos. Muito se escreveu já na comunicação social, logo após a sua morte, sobre esta figura marcante da Igreja em Portugal, mas, no que diz respeito à Brotéria, de que foi diretor entre 2008 e 2016, guardamos para este número esta singela evocação. As palavras de Eduardo Lourenço poderiam aplicar-se muito bem à personalidade de António Vaz Pinto.
Quando, em novembro de 2008, escreve o seu primeiro editorial como diretor da revista, uma breve reflexão sobre a identidade da Brotéria, plasmada no subtítulo Cristianismo e Cultura, afirma que a revista tem como foco «uma adesão refletida e inteligente aos valores e raízes cristãos (...) que são a sua razão de ser»[1], mas, por outro lado, tem o desejo explícito de integração crítica na cultura contemporânea e de permanente diálogo intercultural com o mundo diversificado e complexo que nos envolve.
António Vaz Pinto foi um dileto filho das grandes reformas conciliares dos anos 60, que se traduziram no modo como abraçou a sua missão. Entrado na Companhia de Jesus em 1965, em pleno Concílio Vaticano II, a sua ação será muito marcada pelo “aggiornamento” que a própria Companhia pós-conciliar viveu. Era sacerdote há um ano quando foi convocada a XXXII Congregação Geral, pelo então superior geral, Pedro Arrupe, principalmente com o propósito de “definir e eficazmente concretizar o tipo de serviço que a Companhia de Jesus deve prestar à Igreja neste período de rápidas mudanças no mundo e assim responder ao desafio que esse mundo nos lança”. O decreto 4º da Congregação Geral formula o binómio serviço da fé e promoção da justiça como linhas mestras inspiradoras para a missão da Companhia. A ação de António Vaz Pinto foi muito pautada pela formulação deste binómio.
É ao serviço da fé que em 1975 dá início com outros companheiros, no coração da Universidade de Coimbra à fundação dos centros de pastoral universitária, num período agitado na vida social e política portuguesa, experiência que em 1984 se estende, por sua mão, para Lisboa com a fundação do Centro Universitário Padre António Vieira – CUPAV. A sua colaboração na Radio Renascença por muitos anos, os muitos grupos e pessoas que acompanhou, os muitos turnos de Exercícios Espirituais que orientou e, por último, os livros de formação cristã que escreveu, inscrevem-se nesse horizonte de serviço da fé.
No campo da promoção da justiça o seu nome ficará ligado à fundação da ONG- Leigos para o Desenvolvimento (1986), do Banco Alimentar contra a Fome (1992) e do Centro Comunitário São Cirilo, no Porto (2002), tendo exercido entre 2002 e 2005 o cargo de Alto-Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas. Em atenção a este relevante contributo, a 30 de janeiro de 2006, foi distinguido pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
Homem de ação, não deixa de ser surpreendente, até para o próprio como confessa no seu último livro[2], a sua nomeação, em 2008, para diretor da Brotéria. O seu empreendedorismo terá norteado esta decisão, na expectativa de que haveria de transformar a revista num projeto cultural mais amplo. E, de facto, o seu papel nessa transformação, particularmente no que diz respeito à parceria cultural estabelecida com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, será determinante.
No seu primeiro editorial de 2008, lá aparece, de novo, o binómio serviço da fé/ promoção da justiça, a que se soma o diálogo intercultural, como «polos dinâmicos em torno dos quais iremos procurar e promover a linha e o futuro da Brotéria». Homem mais de ação do que de reflexão, António Vaz Pinto abraçou com o modo generoso que o caracterizava esta missão. A Companhia de Jesus tinha acabado de eleger nesse ano de 2008 um novo superior geral, Adolfo Nicolás, e o primeiro artigo que é publicado é precisamente sobre a Congregação Geral XXXV, que teve como lema “Enviados às fronteiras da Igreja”, da autoria do jesuíta Manuel Morujão. Em 2009, ano em que se celebravam duzentos e cinquenta anos da expulsão dos jesuítas de Portugal, a Brotéria dedicou um volumoso número monográfico a essa temática, contando com a colaboração de numerosos especialistas. Do ponto de vista eclesial, o seu mandato à frente da revista assistirá ainda à renúncia do Papa Bento XVI em 2013 e à eleição do Papa Francisco. Em parceria com as restantes revistas jesuítas europeias, será publicada na Brotéria, em setembro de 2013, a primeira entrevista concedida pelo novo pontífice ao diretor de La Civiltà Cattolica, o jesuíta António Spadaro. Foi traduzida em diversas línguas e publicada no mesmo dia em muitos países.
Do seu tempo como diretor da revista, ficaram o empenho que colocou em se rodear de um sólido conselho de redação, que reunia regularmente, os convites que dirigiu a muitas figuras marcantes da cultura portuguesa para escrever na Brotéria, as curtas reflexões sobre temas de atualidade que abriam o número da revista e os muitos esforços que fez por melhorar a sustentabilidade da revista.
Teve oportunidade, a escassos dias de ser internado, de celebrar os seus oitenta anos de vida, rodeado de companheiros, familiares e amigos. Como disse numa entrevista que deu então ao portal PONTOSJ «estou muito grato a Deus pela vida que me deu. (...) A morte é a porta da ressurreição. Por isso, se me disserem que eu vou morrer amanhã, não me afeta nada, não preciso de mais de um quarto de hora. É só mudar de casa».
[1] Brotéria 167 (2008): 319-320.
[2] Cfr. António Vaz Pinto SJ, História de Deus Comigo – II e outras memórias (Lisboa: Aletheia Editores, 2022), 19-22.
— P. António Júlio Trigueiros SJ
Editorial Brotéria outubro 2022