O INÍCIO DOS BONS LUGARES
A Brotéria entrou em 2023 com o desejo de cultivar a atenção, de procurar, de promover e de mostrar bons lugares. Chamámos a isso eutopoi, numa construção livre de uma palavra que significa exatamente isso: o topos que é eudaimon – o lugar que é feliz, não de maneira fugaz, mas através da prática da virtude e do desenvolvimento do potencial humano em todas as suas dimensões. Mais do que encontrar um mote ou um filão temático inspirador que de algum modo abarcasse toda a atividade da Brotéria, quisemos que a nossa missão e a nossa identidade[1] adotasse este modo de ver. Consequentemente, que nos implicasse na exploração – criativa e conscientemente – da eutopia como «possibilidade de tornar real, concreta, tangível, a visão que se tem para o mundo»[2], caminho mais promissor do que a utopia, onde a revelação do bem é eternamente adiada porque se mostra inalcançável. De uma formulação talvez arriscada foi crescendo uma busca quase obsessiva pelo bom lugar, tornando-se o motor de trabalho da equipa da Brotéria: organizámos um epónimo ciclo de conferências mensais, encomendámos artigos para a revista surgindo até um número especial “a propósito da juventude”, montámos um programa de itinerância da nossa atividade através da revista, (re)conhecemos tesouros na nossa centenária biblioteca, montámos exposições de arte contemporânea, que paralelamente foi transformando o modo como trabalhamos em equipa, como avaliamos aquilo que fazemos e como procuramos receber todos os que nos visitam in loco, nos leem ou chegam até nós através de tantos meios diferentes.
Cientes de que a luta por melhorar o nosso mundo é lenta e acidentada, destacamos algumas notas que foram ganhando substância nesta busca por elementos concretos de esperança e por lugares portadores de bem e de bondade.
PERIGOSAMENTE INOFENSIVOS?
Sensivelmente a meio do ano, numa conversa a propósito do projeto da Brotéria com alguém que teve um papel importante no seu início, foi-nos dito que, ao fim de três anos e pouco de funcionamento, corríamos o risco de estar a construir um projeto em que éramos “perigosamente inofensivos”. O que estava por de trás era uma impressão de que a Brotéria poderia ser, no fundo, uma coleção de pessoas simpáticas e corteses, mas que nada tinha de verdadeiramente acutilante para afirmar num mundo cheio de tragédia e de tensão. Procurar bons lugares, foi-nos dito, é uma intenção nobre, mas no limite naïf e improcedente.
Pensar nesta crítica e discuti-la em equipa, permitiu-nos fortalecer as nossas intenções. Não só não nos reconhecemos nesta hipótese como também não partilhamos da visão de que buscar bons lugares seja um exercício ingénuo ou pouco corajoso. Contudo, isto levou-nos a tomar consciência de que não somente o que pensamos, dizemos e escrevemos mas também o que pomos em prática, através da nossa atividade e do nosso modo de receber, se desenvolve a um ritmo próprio, mais lento, porventura diferente daquele a que o nosso tempo nos tem habituado. Na ordem do dia de quase todas as organizações está o enquadramento nos objetivos de desenvolvimento sustentável e na medição de impacto através de métricas e indicadores que dificilmente poderão relatar aquilo a que a Brotéria se tem proposto. Isto não significa que o nosso exercício seja inconsistente, que tenha objetivos inconsequentes ou que a nossa vontade seja de não nos implicarmos mais diretamente no combate àquilo que está mal. Contudo, temos aprendido e compreendido que o bem que procuramos se revela mais no longo do que no curto prazo e que talvez não caiba nos comuns indicadores-chave de desempenho.
É esta intuição fundamental que se começava a esboçar no artigo “Notas sobre a construção de uma comunidade”[3], quando se dizia que, para a Brotéria, pôr em prática a hospitalidade, a verdade e a busca da beleza era já concretizar a missão a que nos propomos. Foi ela que acabou por motivar o editorial do P. José Frazão Correia do número de fevereiro de 2023[4]. Aí se apresentam quatro coordenadas[5] que permitiriam perceber se estamos ou não a construir bons lugares. Revisitar esses artigos pode ajudar a perceber qual é o processo interno de busca e de pensamento coletivo de uma equipa sobre o que significa a sua missão. Mas, acima de tudo, pode ajudar a perceber que, para a Brotéria, não há pressa para que a busca destes bons lugares dê fruto: acreditamos que, lentamente, sem sofreguidão, o que constitui memória agradecida e investimento no futuro, abertura ao que transcende e confissão do limite, se revelará com toda a sua força. Por isso, em primeiro lugar, reconhecemos que o tempo amadurecerá, esclarecerá e confirmará, “a seu tempo”, o fruto desta busca. Há sementes que começam a crescer e a distinguir-se. Porém, das sementes às árvores vai uma distância que tem de ser cuidada com paciência e esperança. Não estamos a cair no relativismo moral nem a deixarmo-nos anestesiar pela ideia de que “não ter mal” é igual a ter bem. Ainda assim, no meio da maldade e da falta de esperança, a nossa opção passa por olhar e mostrar exemplos de bem e de bondade ou escondidos ou relativamente invisíveis.
Posto isto, a pergunta mantém-se: sementes de quê? Que bons lugares são estes e como é que os pensamos?
O BEM VAI-SE REVELANDO EM MOVIMENTO
O anúncio do Reino encontra o seu lugar mais apropriado no caminho – caminho esse que, como lugar da boa nova do Evangelho, coloca a missão da Igreja sob o sinal do “ir” e do “movimento” e nunca da imobilidade[6]. Aliás, é isto que pertence à tradição cristã desde o seu início: «Vamos às aldeias vizinhas, para que eu também pregue ali» (Mc 1, 38).
Este dinamismo próprio do anúncio esteve sempre presente na tradução e na corporização da ideia de eutopos. Ao mesmo tempo, esteve presente no modo como a equipa foi mudando a sua maneira de trabalhar: crescendo num modo coletivo de concretizar as tarefas de cada um e tomando consciência de que a procura incessante de bons lugares é, em si, um caminho que não se pode fazer sozinho, sem respeito pelo ritmo de cada um, sem curiosidade pelos interesses e pelas tarefas de quem trabalha connosco, sem a vontade de procurar o bem escondido e reconhecer a bondade que, tantas vezes, no dia a dia, nos passa ao lado. Esta mudança, quase invisível mas paradigmática do modo de trabalhar, levou a que o desenho das atividades (conferências, cursos, exposições, artigos) ganhasse o dinamismo próprio de quem se põe a caminho em conjunto: crescendo em criatividade, em visões díspares e no sentido de missão coletiva em encontrar bons lugares e, consequentemente, em potenciar o cruzamento entre a fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas, com as suas inquietações próprias; mas também na consciencialização de que o cansaço e a desmotivação não têm que ser vividos isoladamente ou sem a companhia de outros.
Num ano em que organizámos cerca de duas centenas de atividades – entre cursos, oficinas, lançamentos da revista e inaugurações de exposições, com informação sobre tudo isto disponível no nosso website –, torna-se particularmente difícil escolher quais destacar. Cientes de que a revelação, o encontro e as conclusões a retirar dos eutopoi foram diferentes para cada membro da equipa, leitor da Revista, participante ou interveniente na nossa programação, visitante da galeria ou pessoa que entra casualmente na nossa casa, parece-nos, enquanto membros diariamente mais implicados na organização e promoção de toda a atividade, que vale a pena olhar para três veículos que diferentemente traduziram e abriram pistas para que o bem escondido se pudesse tornar visível: o ciclo de conferências Eutopos, o programa de itinerância da revista e aquilo que a então iminente vinda do Papa para a Jornada Mundial da Juventude implicaria.
CONFERÊNCIAS EUTOPOS
As premissas iniciais que nos foram motivando no final de 2022, de que o bem se pode revelar de muitas maneiras e de que está muitas vezes escondido, por razões que não imaginávamos tão numerosas (por ser uma notícia que potencialmente não vende, por não estar suficientemente afim com o movimento woke, por não se enquadrar num Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, por ser uma abordagem aparentemente académica ou por não ter qualquer aplicabilidade útil e prática ou simplesmente porque acaba por perder urgência no meio de situações tão veementes como a guerra, a fome e todas as razões que levam a que, sem tempo para ganhar distância, muitos já se refiram ao tempo que vivemos como os dark twenties[7] ou a chaotic era[8]) levaram a que, ao longo de onze conferências mensais, se cobrissem temas e ângulos muito diversificados, juntando oradores de diferentes idades, áreas de formação e nacionalidades.
Mais do que uma proposta de conteúdo, Eutopos assumiu-se como uma espécie de metodologia para olhar a nossa circunstância. Zena Hitz[9], a conferencista de julho, ilustra bem esta intenção ao contar o caminho que Einstein teve de percorrer: recusado nos empregos que desejava, foi no mundano escritório de patentes onde foi aceite que desenvolveu as suas ideias mais brilhantes que acabariam por abrir caminho para aquilo que foi o seu grande contributo para a humanidade. Apesar de não ter encontrado espaço no mundo a que aspirava pertencer, Einstein acabou por encontrar o lugar em que podia ser quem era e refletir sobre o que realmente desejava. A vida intelectual está profundamente ligada à atitude do indivíduo perante o que está a fazer, do mesmo modo que a busca por eutopoi está intimamente ligada à atitude de em qualquer lugar escolher o bem. A insistência de Hitz de reconhecer a importância de aprender coisas inúteis ou coisas sem finalidade prática, revelou-se imensamente inspiradora: desenvolver a imaginação, investir na leitura, crescer na vida espiritual, através das pequenas aprendizagens que se vão fazendo através dos meios mais inesperados, é o resumo e a síntese do que se pode esperar de um bom lugar no que diz respeito à vida intelectual.
Foi assim que, ao longo do ano, nos foi oferecida a possibilidade de pensar as vantagens da universidade, apesar de as conversas públicas, inevitavelmente, serem sobre os problemas financeiros, laborais, sociais e políticos que, inevitavelmente também, se levantam; conhecer o que há a preservar na tradição jesuítica que tem privilegiado o uso da retórica numa realidade crescentemente tecnológica e como isso não é necessariamente uma ameaça; imaginar como é que narrativas literárias podem ser pistas para criar estruturas arquitetónicas mais flexíveis e inclusivas; valorizar os passos desconhecidos por muitos e quase invisíveis que este pontificado deu para reformar a economia do Vaticano e tornar as contas mais transparentes; tomar consciência que Portugal não tem propriamente um problema falta de água, mas antes uma questão de má distribuição da mesma; compreender que a originalidade na criação em moda pode ultrapassar questões aparentemente frustrantes como a possibilidade de se ser copiado; aprender que o nosso cérebro nasce com uma série de características que nos permitem distinguir o que é belo, mas que é através do contexto social e cultural que vamos aprimorando esta capacidade; consciencializar que a agricultura biológica tem limitações se queremos poder alimentar toda a humanidade e que há um conjunto de escolhas que tomamos que podem trazer equilíbrio ecológico; considerar a tensão entre a possibilidade de toda a manifestação de virtude ser irracional e a ideia de que o vício carece de racionalidade.
Num tempo como o que vivemos, acreditamos que este caminho humanista de curiosidade e respeito pelo próximo possa parecer utópico e inofensivo. No entanto, ao longo deste ano, as pistas lançadas nestas conferências foram-se revelando formas de estar concretas e sensatas. Parafraseando David Brooks[10], a capacidade de compreender as pessoas com quem lidamos é prática; liderar com respeito e curiosidade é prático. Contra todas as estatísticas, cálculos e indicadores que constantemente nos empurram para uma espiral de pessimismo e desconfiança, este ciclo mostrou-nos que há meios em diferentes áreas para corajosa e eficazmente contrariar e travar essa descida. No centro de cada família, organização e nação saudáveis tem de haver habilidade humanística fundamental: a capacidade de olhar o próximo, procurando compreendê-lo e fazê-lo sentir-se olhado, ouvido e compreendido[11]. Foi este o caminho que quisemos abrir e começar a percorrer.
REVISTA FORA DE PORTAS
Desde a abertura de portas no novo edifício, em 2020, que a revista Brotéria tem tido uma sessão mensal pública de apresentação de cada novo número. Temos procurado gerar maior diálogo em torno dos artigos publicados, gerando também condições para que se crie uma comunidade daqueles que leem habitualmente a revista. Certos de que os bons lugares exigem que nos ponhamos a caminho, em 2023, seis destas sessões mensais aconteceram fora de Lisboa. A Brotéria esteve em Guimarães, Beja, Fundão, Évora, Braga e São Miguel e teve a oportunidade de ver nestes lugares o muito bem que fazem as instituições culturais que nos acolheram. Este é um dos pontos altos do ano e destacá-lo é questão de justiça: em todo o país, em sítios mais ou menos cosmopolitas, há instituições culturais de enorme qualidade que vivem com grande compromisso o desejo de contribuir para a vida das comunidades em que estão inseridos e que desejam servir. Há um espírito de serviço efetivo, tanto nas instituições privadas como nas públicas, que foi indisfarçavelmente visível em todas as visitas que fizemos. Poder visitar estas cidades em equipa, conversar sobre o que vimos, aprender sobre as realidades locais foram um privilégio e uma fonte de grande consolação que abriram ligações que esperamos que se fortaleçam e venham a dar mais fruto no futuro.
Estes bons lugares que a Brotéria visitou permitiram-nos ser recipientes daquilo a que viemos a chamar, talvez de forma indevida, “hospitalidade invertida”: oferecemos e recebemos hospitalidade. É verdade que a Brotéria praticar hospitalidade no seu espaço tem sido uma forma de viver a nossa identidade cristã. Nestes seis casos, porém, a dinâmica inverteu-se e foi a Brotéria quem foi recebida e a quem foi oferecida hospitalidade. Ter a experiência de nestas itinerâncias tomar contacto com assinantes de distintas partes do país mas também com as equipas de instituições culturais e artísticas muito variadas, convenceu-nos de que há ainda muitos bons lugares para explorar – não só em termos temáticos mas também em termos geográficos e em toda a diversidade que isso representa.
EM TORNO DA JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
Finalmente, um destaque sobre a JMJ. No início do ano, a Brotéria foi convidada para organizar um encontro entre o Papa e o mundo das artes por ocasião da vinda do Papa a Portugal. Foi um convite ao qual a equipa da Brotéria se dedicou com grande entusiasmo, tendo preparado um programa que nos parecia ser inovador e, ao mesmo tempo, possibilitador de um encontro verdadeiro entre a Igreja e os artistas. Por razões várias, este encontro acabou por não acontecer – mas deixou na nossa equipa a convicção de que existe verdadeiramente espaço para pensar uma relação mais próxima entre a fé e a cultura. Mesmo tendo sido um evento não realizado, o que revelou foi verdadeiramente um eutopos na maneira como foi gerando entusiasmo e vida e fecundidade em torno da ideia de ver o Papa Francisco a ser um participante numa performance que reunia as grandes inquietações e alegrias do mundo cultural nacional e internacional.
Longe de ser uma experiência definitiva de frustração, esta tomada de consciência de que é possível descobrir novos lugares para o encontro entre a fé e a cultura serviu de motivação para o número especial de maio-junho publicado a propósito da juventude, bem como para a série de conversas e conferências que antecedeu a JMJ, organizada na Brotéria em parceria com o Ministério da Cultura, e que procurou explorar livros que o Papa Francisco referiu ou citou ao longo dos seus dez anos de Pontificado. Há, com alguma frequência, um certo derrotismo no discurso eclesial em relação à possibilidade de a fé cristã ser verdadeiramente interessante para a arte, para os artistas, para a cultura contemporânea. Em 2023, o que a Brotéria viu com muita clareza foi que a possibilidade do encontro existe, bem como a possibilidade do respeito e da admiração mútuas. A JMJ foi um bom lugar também por isso.
LUGARES E PESSOAS
Não são só lugares. São também pessoas. Temos encontrado bons lugares e temos encontrado nesses lugares boas pessoas. Explicitá-lo ajuda a tornar concreto o que se tem vindo a alcançar. A generosidade com que, no número especial de maio/junho, Madalena Meneses falou do seu percurso de descoberta e crescimento na fé encheu-nos de humildade e respeito. O trabalho que a Associação Tanque desenvolveu no Bairro Alto a propósito do clube de leitura “Poesia no Bairro”, com o contacto que tudo isso implicou com os mais idosos e menos escolarizados desta zona da cidade, mostrou que é possível não desistir dos que de muitas maneiras foram abandonados pelo país quando eram mais novos. Da mesma maneira, a dedicação da equipa que organizou o Seminário “Pensar a Educação” revelou um compromisso genuíno com os alunos, o modo de ensinar ou a forma de garantir que as escolas são lugares que contribuem para o crescimento intelectual, moral e social de todos os estudantes. São três exemplos de uma pletora que poderia ser invocada e que não é negligenciável: o mundo no qual vivemos está cheio de boas pessoas, de quem luta pela verdade e pela hospitalidade e pela beleza, de quem não desiste de mostrar que a esperança – entendida aqui no seu sentido cristão mais puro – não é algo do futuro, mas sim algo do presente.
Vivemos tempos de alguma desilusão em relação à possibilidade de encontrar pureza nas pessoas que nos rodeiam. O escândalo dos abusos sexuais, por exemplo, ou a recente suspeita de corrupção que levou à queda do governo parecem levantar uma desconfiança quase generalizada em relação às instituições e às pessoas que as compõem. Porque está profundamente radicada na tradição da fé cristã, para a Brotéria, este pessimismo antropológico levanta dificuldades profundas. Daí que ter razões concretas para desafiar e contrariar esta desilusão seja tão importante. É preciso reafirmar a bondade dos lugares mas também das pessoas: artistas, conferencistas, autores da revista, doadores e financiadores foram, em 2023, exemplos claros de que, no meio das inquietações urbanas contemporâneas, não falta compromisso com a construção de um mundo de justiça e de paz – que é, em última análise, aquilo que descreve o que será o Reino dos Céus e, por consequência, aquilo que a Brotéria busca.
A TENSÃO DE VIVER ENTRE O ANÚNCIO E A DENÚNCIA
Com tudo isto, fica ainda a faltar alguma coisa. Há uma sensação de incompletude no que a Brotéria tem vindo a fazer ao longo deste ano. É verdade que os lugares que temos descoberto e aos quais temos sido conduzidos são reafirmadores de esperança, sem que isso implique algum tipo de ingenuidade em relação aos sofrimentos do mundo. São lugares cheios de futuro, habitados por pessoas comprometidas com este desejo de descobrir como a fé cristã pode ser vivida no meio das inquietações urbanas contemporâneas. Mas são também lugares, em alguma medida, que podem ser levados mais longe.
O simples facto de estes bons lugares existirem e de estarem à vista é, só por si, transformador e construtor de um mundo melhor. É isso que nos revela o que começámos em 2023 e é isso que um texto de balanço como este procura mostrar. Há, porém, uma dimensão acrescida que não pode ser ignorada na vida de um projeto como a Brotéria: a uma casa como esta, não basta “anunciar” o bem, mas é preciso também “denunciar” o mal. Este duplo princípio, formulado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja (§81), decorre de outro binómio formulado também no mesmo texto que fala de como compete à missão da Igreja “interpretar e orientar” a realidade (§72), isto é, lê-la com respeito para poder dar pistas sobre aquilo que nela é um modo de viver mais fecundo. Com estes dois binómios em mente, partimos para 2024 convictos de que há ainda muito para mostrar no que diz respeito aos bons lugares do mundo em que vivemos mas também desafiados pelo facto de compreendermos cada vez melhor que a esse trabalho de anúncio e interpretação é necessário somar uma dimensão de denúncia e orientação. Com efeito, é preciso que não gastemos todo o nosso olhar na destruição e violência causadas pela guerra, mas que sejamos capazes de reconhecer modos de construção da paz que sejam inspiradores, como aconteceu, em abril, com a conferência que Lisa Cahill trouxe à Brotéria. Ainda assim, é preciso realmente encontrar modos e formas de lutar contra a violência, de a recusar, de a denunciar abertamente. Encontrar bons lugares, promover a esperança, não é inimigo de combater os maus lugares e de procurar, também com humildade, contribuir para que eles tenham menos expressão e menos espaço.
Pode parecer estranho que um espaço cultural como a Brotéria tenha esta necessidade. Em rigor, é uma aflição que nos acompanha desde o início: queremos ser portadores de esperança, reveladores de bem e bondade, construtores de um olhar positivo para tudo o que este tempo tem de positivo, mas queremos, em simultâneo, habitar um mundo que se preocupe com a justa remuneração dos trabalhadores, com a criação de condições para que se possa aceder a uma habitação digna, com o acesso adequado à cultura e aos bens culturais. Queremos também contribuir para que o debate teológico que existe no nosso país seja melhor do que tem sido, para ajudar a formar líderes políticos e empresariais que não sejam manchados pela corrupção que na última década assombrou o nosso país, para, na nossa pequena escala, trazermos ao nosso país interesses mais pertinentes do que a eleição de dirigentes desportivos ou as intrigas mais recentes das revistas de jet-set.
Não nos revemos como sendo “perigosamente inofensivos”. O que vemos, aliás, é que este caminho de revelar bons lugares ajuda a Brotéria a cumprir com a missão a que se propôs. Em todo o caso, compreendemos que há ainda mais a fazer para que o nosso mundo possa todo ele ser eutopos. Isso passa por aprender a situar-nos neste lugar de tensão entre o anúncio e a denúncia, revelando o bem escondido e recusando o mal presente. Neste ano que agora começa, contamos com a presença de toda a comunidade da Brotéria para nos ajudar a crescer neste caminho.
[1] O cruzamento da fé cristã com as culturas urbanas contemporâneas.
[2] Francisco Sassetti da Mota SJ, “Eutopos”, Brotéria 196-1 (2023): 6-10.
[3] Brotéria 195-2/3 (2022): 176-183.
[4] “Coordenadas para um lugar bem situado”, Brotéria 196-2 (2023): 142-148.
[5] Memória grata, investimento no futuro, abertura ao que transcende e confissão do limite.
[7] https://www.newyorker.com/culture/2023-in-review/what-to-call-our-chaotic-era
[8] Ibid.
[9] https://www.broteria.org/pt/programa?eutopos-learning-liberation-and-consolation
[10] https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2023/10/humanism-skills-for-better-society-world/675745/
[11] Ibid.
Podcast