O Ano Inaciano, celebrado pela Companhia de Jesus a nível mundial, que correu sob o lema “Ver novas todas as coisas em Cristo”, fecha no próximo dia 31 de julho, Festa de S. Inácio de Loiola, na memória da sua morte em 1556.
A celebração, que teve como desafio interiorizar, difundir e atualizar a espiritualidade inaciana e o modo da Companhia de Jesus estar em missão, surge enquadrada pela memória agradecida de dois centenários: os 500 anos da conversão de Inácio de Loiola (21 de maio 1521) e os 400 anos da sua canonização, juntamente com Francisco Xavier, a 12 de março de 1622. O cavaleiro irrequieto, filho mais novo dos Loiola, no País Basco, defendendo o castelo de Pamplona, cai atingido por uma bala de canhão que o deixará ferido para a vida. Essa ferida tornar-se-á fonte de outra vida.
Mais do que um grande evento, quis-se que este Ano fosse um exercício de memória agradecida, de celebração festiva e de abertura à desejável renovação que esteja à altura dos muitos desafios e interpelações dos novos tempos. Como o Papa Francisco lembra com frequência, “o processo é mais importante que o evento”. Vivemos, porém, numa cultura que exalta o evento e o espetáculo, podendo fazer esquecer que são as questões “de onde vem?” e “aonde é que leva?” que enquadram e dão sentido ao evento. São essas as perguntas certas.
Parece claro que ainda não chegou o tempo de colher e de avaliar globalmente as flores e os frutos do que se viveu neste Ano Inaciano. Chegam-nos notícias do muito que se fez e com qualidade, onde quer que jesuítas e comunidades de espiritualidade inaciana tenham respondido ao apelo desta celebração: publicações, congressos e grandes encontros, exposições históricas e artísticas, exercícios espirituais, peregrinações, filmes, etc.. Mas não basta elencar acontecimentos. É importante, desde já, que nos disponhamos a olhar criticamente para tanto e tão variado investimento. Se ainda não é tempo de provar o vinho, pode e deve ser tempo de pôr em marcha a vindima.
Entre nós, jesuítas e comunidade inaciana em Portugal, não será esquecido o ponto alto que foi o grande encontro em Fátima, a 12 de março passado, da assim chamada “Família Inaciana”. Apesar de um dia tão chuvoso, respirava-se alegria e comunhão, com gente e grupos de todas a idades e proveniências: colégios e centros universitários, paróquias e campos de férias, famílias, grupos e comunidades de vida cristã (GVX e CVX), entre outros, com programas próprios: caminhadas, oração, debates sobre temas inacianos, entre os quais, o lema do Ano “ver novas todas as coisas” e “as preferências apostólicas universais”, linhas de rumo assumidas recentemente pela Companhia Jesus como critério para a sua missão em todo mundo. Ao fim da tarde, na grande e nova Basílica de Fátima, o Pe. Miguel Almeida, superior da Província de Portugal, presidiu à eucaristia com cerca de 3000 pessoas.
Também a Brotéria procurou «olhar para a realidade de um modo renovado – com um pensamento aberto e não rígido, com esperança e perseverança, mas sem a ingenuidade de encarar os problemas complexos do mundo como se fossem de simples solução», como se pode ler na brochura de programação. A partir da narrativa da conversão de Inácio, promoveu conversas sobre arte, literatura e alimentação, cultura, comunicação e natureza enquanto lugares efetivos de atenção a feridas e de cuidado do corpo individual e social. Organizou, também, um ciclo de cinema de curtas-metragens originais, movida pela convicção de que «olhar de novo é uma oportunidade para nos deixarmos mover e contaminar por outras visões e leituras; por aquilo que não somos nós e que o cinema nos pode ajudar a querer ser». “Ferida”, “caminhada”, “conversação”, “comunidade”, “transformação”, “ver de novo”, foram os temas propostos – poderiam constituir uma grelha possível de avaliação deste ano. Ainda neste âmbito, já durante este mês de julho e até final de agosto, sobre a vivência do trabalho ao longo deste ano, lançará nas redes sociais “conversas para combater o desassossego”, a partir da experiência de cada elemento da equipa da Brotéria.
Em todo o mundo, este Ano Inaciano foi sendo fonte de muitas iniciativas e de grande mobilização. Fica claro que é urgente e necessário reavivar a luz e a chama inaciana que permitem ver com olhos novos, com o olhar de Cristo, toda a realidade do mundo contemporâneo, nas suas múltiplas circunstâncias. Implica ir às origens e atualizar hoje a sua fecundidade. Inácio de Loiola conta na sua Autobiografia a experiência de uma “visão”, intelectual e afetiva, que teve, um certo dia, caminhando junto ao rio Cardoner, em Manresa, nos arredores de Barcelona, para onde se tinha retirado, e que o marcou para o futuro. Dava, então, os seus primeiros e grandes passos nos caminhos e lutas do espírito e começava a escrever os seus Exercícios espirituais. Diz ele, falando de si como “o Peregrino”: «O rio corria fundo. E, sentando-se, começaram a abrir-se-lhe os olhos do entendimento e conhecendo muitas coisas, tanto de coisas espirituais, como coisas da fé e das letras. E isto com uma ilustração tão grande, que todas as coisas lhe pareciam novas». E contou também, a propósito desta e de outras ilustrações que teve: «estas coisas que viu então, confirmaram-no e deram-lhe tanta confirmação da fé, que muitas vezes pensou consigo que se não houvesse Escritura que nos ensinasse estas coisas da fé, ele se determinaria a morrer por elas, só por aquilo que viu» (Autobiografia, nn.29.30).
E nós, agora? O que fazer com esta herança? Não só os que se sentem chamados à espiritualidade inaciana, mas todos: todo os que, pelo Evangelho, se sentem chamados a ver e a amar o mundo pelos olhos de Cristo, com Ele e por Ele; todos os homens e mulheres de boa vontade.
Parece muito certeiro o lema condutor proposto pelo Padre Arturo Sosa, Superior Geral dos jesuítas: “Ver novas todas as coisas em Cristo.” Hoje, amanhã e em todas as circunstâncias e lugares, ver discernidamente. Ver e distinguir com a sabedoria e a luz do Espírito Santo, essa Graça que confere o entendimento e a esperança de que o mundo precisa, gerando um caminho interior e um determinado modo de estar e de proceder.
O Ano inaciano poderá impulsionar esse caminho. Como? O próprio Pe. Arturo Sosa ofereceu a resposta: são os exercícios espirituais, esse grande legado experiencial de Inácio de Loiola, que nos levam a ver novas todas as coisas! Falando no Congresso Internacional sobre Exercícios Espirituais, organizado pela Conferência dos Provinciais da América Latina e Caribe (25-28 de outubro de 2021), desenvolveu o tema “Da ferida a uma Nova Vida”. O seu texto é uma releitura original da vida e do processo espiritual do próprio Inácio de Loiola. Ordena-o em sete grandes passos sequenciais, de maturação e de santidade, tal como nuns exercícios espirituais feitos na vida quotidiana, pautando tudo pelas três grandes experiências (místicas) com que Deus se comunicou a Inácio, desde a conversão pessoal até à fundação da Companhia de Jesus, de Loiola até Roma, em três tempos: o da convalescença em Loiola (distinguir os espíritos e o desafio da liberdade); em Manresa (a grande ilustração e o fascínio por Cristo); em La Storta, às portas de Roma (a visão da missão, o Pai pondo-o com o Filho, ao serviço da Igreja). O Pe. Arturo Sosa descreve, então, uma larga peregrinação interior e exterior em sete passos: 1) Inácio experimenta que Deus se comunica diretamente através dos afetos; 2) Que Jesus Cristo lhe aparece como objeto de desejo; 3) Descobre a presença de Deus no mundo; 4) Aprende a participar na obra de Deus, entregando-se a ajudar as almas; 5) Aprende a superar o voluntarismo; 6) Aprende a ser passivo, a deixar-se levar por Deus; 7) Aprende que “tudo é graça”.
Que futuro para o Ano Inaciano? Fica patente e disponível o paradigma que permite ver novas todas as coisas. Em Cristo, evidentemente, entendendo e experimentando que, como diz o Pe. A. Sosa, para todos e cada um, «a experiência de Deus é experiencial e experimental».
— P. Vasco Pinto de Magalhães SJ
Editorial Brotéria Julho 2022