Volume 200 — 3, Março 2025

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Bernardo Caldas

O sonho de recriar a capacidade humana de raciocínio tem fascinado a humanidade. Embora os Grandes Modelos de Linguagem como o ChatGPT demonstrem capacidades impressionantes na geração de texto e resolução de problemas, existe uma diferença fundamental entre replicar os produtos da inteligência e reproduzir a própria inteligência. Estes modelos operam exclusivamente no domínio da linguagem – um “mapa” imperfeito da realidade – sem demonstrarem verdadeira compreensão ou capacidade de raciocínio abstrato. Tal limitação estrutural tem implicações significativas, especialmente em áreas críticas como saúde e educação, onde precisão e factualidade são essenciais. A Igreja é clara na sua visão sobre a natureza integral da inteligência humana e da sua orientação à verdade, contrastando com a finalidade puramente funcional da Inteligência Artificial (IA). O verdadeiro desafio não é técnico, mas ético: garantir que o desenvolvimento da IA sirva o bem comum.


José Frazão Correia SJ

Elon Musk, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos, “mais poderosos do que os Estados”. Vimo-los perfilados e em destaque na recente tomada de posse de Donald Trump. O sistema tecnológico que representam, como aparato global formado por finança, ciência, inovação e desenvolvimento, passou de instrumento de gestão de prioridades políticas a autoridade soberana que as produz e as dita. Esta passagem é a marca distintiva da época em que entrámos. Quem domina a “máquina inteligente” domina o mundo. Como compreender o papel da política neste novo quadro e como orientar-nos nele? O artigo “Os Musk, a Máquina e a esquerda fora de campo”, do filósofo Massimo Cacciari, publicado na edição de 13 de janeiro do jornal La Stampa, oferece pistas relevantes. No que aos cristãos e às igrejas diz respeito, cabe-lhes a atenção crítica, a liberdade de palavra, a recusa a serem instrumentalizados ideologicamente. A compaixão será a sua força mais autêntica.


André Costa Jorge, Leonor Félix da Costa

O Pacto em matéria de Migração e Asilo, aprovado em 2024, vem estabelecer a harmonização das normas de tratamento dos requerentes de asilo que chegam à Europa. Na sequência da “crise dos refugiados” de 2015 que expôs a incapacidade dos Estados-Membros de agirem de forma coordenada e solidária perante desafios comuns, o Pacto surge num contexto de crescente securitização da migração. Como em qualquer tentativa de uniformização, há sempre quem fique para trás. Ainda assim, o Pacto introduz alguns mecanismos que podem fortalecer a proteção de direitos fundamentais de requerentes de asilo e de refugiados, oferecendo uma oportunidade, limitada, mas real, para melhorar a resposta europeia a este desafio global. Ao legislador e à sociedade civil em geral caberá assegurar a sua aplicação efetiva quando entrar em vigor, em junho de 2026.


Marion Muller-Colard

A globalização conduziu-nos a uma complexidade inédita que exige a nossa vigilância e a nossa capacidade de entrar nela. Uma certa fadiga do pensamento pode fazer-se sentir. Uma fadiga da compaixão também. Ora, não podemos abandonar nem o pensamento nem a compaixão sem correr o risco de participar na desgraça do mundo. Como sair do embaraço que o embaraço produz e fazer da nossa intranquilidade uma “coragem de ser”?


Francisco Martins SJ

Será a Bíblia «um manual de maus costumes, um catálogo de crueldades e do pior da natureza humana», como se lhe referiu José Saramago? O Deus do Antigo Testamento tutela quase tudo isso, mas é também uma divindade atenta à sorte do órfão e da viúva, preocupada com o estrangeiro, comprometida com a justiça. A simples “contabilidade” de horrores ou de méritos não chega, porém, para expor o potencial “eutópico” do texto bíblico. Há uma característica frequentemente ignorada: a Bíblia revela-se uma obra particularmente adversa a absolutos. A recusa em declinar “absoluto” no plural – só Deus é Deus – não é só um interdito verbal ou um imperativo cultural, mas inscreve-se na própria estrutura literária da Bíblia. Na forma como as tradições são transmitidas, a “reunificação” da memória coletiva não eliminou a diversidade subjacente, mas assumiu-a plenamente. A tradição “corrige” assim os próprios excessos, procurando impedir leituras unívocas, certezas estéreis e perigosos fundamentalismos.


Luís Ferreira do Amaral SJ

Para além de ser gerador de perplexidades teóricas, um dualismo mente-corpo parece tornar-se cada vez mais insustentável, se tivermos em conta as contribuições que nos têm chegado das ciências empíricas, em particular das neurociências. Defende-se que um fisicalismo não-redutor pode oferecer uma visão unificada e coerente do ser humano. A atividade mental poderá ser entendida como emergindo das estruturas neuronais do cérebro humano, mas sem com isso deixar de reconhecer como real a perspetiva de primeira pessoa (consciousness). Uma abordagem naturalista deste tipo entenderá a mente e o pensamento humano como fenómenos físicos, pertencendo não a algum transcendente mundo de ideias, mas ao nosso universo espácio-temporal.


Alfredo Teixeira

A morte de Maria Teresa Horta no passado dia 4 de fevereiro faz recuar o autor à memória dos dias em que contactou a escritora por causa de um projeto de criação-investigação que queria desenvolver a partir da sua obra Anunciações: Um romance, de 2016. Enquanto compositor, interessava-lhe essa linguagem poética concisa, plena de sugestões musicais na sua matéria verbal. Do ponto de vista dos Estudos de Religião, interessava-lhe continuar a explorar o terreno das modalidades de heterodoxia enquanto metamorfoses do sagrado contemporâneo. Ficcionando e dilatando o tempo do encontro entre Gabriel e Maria, num romance poético e místico, Maria Teresa Horta compõe um conjunto de quadros, nos quais as figuras da narrativa cristã ganham uma nova espessura enquanto corpo e desejo. O programa musical construído recorta seis desses quadros, que ora se apresentam como uma cenografia imaginária, ora mergulham no alumbramento das palavras. Assim nasceu o ciclo “No princípio eram as asas”, para vozes e violoncelo solo, obra estreada na temporada “Música em São Roque 2017”.


Lídia Jorge

Na cerimónia de Doutoramento Honoris Causa conferido pela Universidade de Aveiro, que aconteceu no dia 18 de dezembro de 2024, a autora faz o elogio das instituições de ensino que encaram a Literatura, não como um adorno ou mesmo uma inutilidade, mas como matéria que está sempre a criar sínteses sobre o tempo que passa e o tempo que se deseja. Não vivendo de qualquer saber científico preciso, a Literatura interpreta os caminhos por onde as ciências humanas, as ciências puras e as aplicadas e as suas realizações tecnológicas prometem fazer os seres humanos
passar. Mas o momento foi também ocasião para regressar à universidade da sua juventude e recordar professores como o Padre Manuel Antunes que lhe ensinou que a Literatura é uma longa frase sem fim que narra o sonho da Humanidade inteira.


Dimensões
15 x 23,4

Nr de páginas
82

ISSN
0870–7618