Acontecem coisas na história com as quais a Igreja deve aprender. Não são tanto coisas raras às quais prestar especial atenção. São forças, sensibilidades, acontecimentos, com os respetivos processos de tensões e de conflitos, que acabam por marcar positivamente a vida das pessoas, transformam o mundo para melhor e permitem alargar o conhecimento da nossa humanidade comum. Pensemos na abolição da escravatura. São modos, práticas, formas que as sociedades e as culturas amadurecem e assumem como traços de identidade e que a Igreja pode reconhecer como sinais através dos quais o Espírito de Deus também lhe fala – apontam para algo que colhe o coração mais íntimo e elementar do evangelho e fazem entrever um futuro que vem de Deus como bem para os homens e as mulheres que vivem neste mundo partilhando a mesma “casa comum”. Com a sua complexidade e mesmo com as suas contradições e desordens, o “mundo”, terra natal comum a crentes e não crentes que fixa as condições reais de qualquer experiência humana, apresenta-se como lugar “espiritual” de aprendizagem para a Igreja. Prestando-lhe atenção, interpretando-o, narrando-o como lugar espiritualmente denso, a Igreja poderá compreender melhor quem é e alcançar mais intimamente a verdade do evangelho que recebeu e que lhe cabe anunciar. Outros interlocutores, questões novas, ângulos diferentes permitem que o evangelho diga o que ainda não tinha podido dizer. Novos leitores leem coisas novas nas mesmas páginas. As situações culturais concretas, são esse “outro”, por vezes, estranho, indiferente ou mesmo hostil, cuja voz a Igreja precisa de ouvir e de interpretar para melhor reconhecer quem é; são um caminho mais longo que lhe cabe percorrer para viver como deve, orientada pelo evangelho, descentrada de si mesma, implicada com outros na edificação do Reino de Deus. Não será arriscada esta exposição ao “fora de si”? Sim, é-o. Mas não é risco menor imunizar-se, enrijecer, autocentrar-se, autocelebrar-se. Sendo assim, a Igreja, sim, seria “mundana”. Ao expor-se aos “sinais dos tempos”, assume que a sua identidade própria não se disperde mas, antes, se reencontra fora de si.
Foi pela mão de João XXIII que a expressão evangélica “sinais dos tempos”, presente nos Evangelhos de Mateus e de Lucas (Mt 16, 2-3; Lc 12, 54-56), passou a entrar no vocabulário do Magistério da Igreja como categoria de construção de pensamento e de orientação de práticas pastorais, quando, em 1961, com a Constituição Humanae salutis (O divino Redentor), anunciou a convocação do Concílio Vaticano II: «apropriando-nos da recomendação de Jesus, de saber distinguir “os sinais do tempo” (Mt 16,3), pareceu-nos vislumbrar, no meio de tanta treva, não poucos indícios que dão sólida esperança de tempos melhores para a Igreja e para a humanidade». Um ano depois, em 1962, reafirmaria no discurso de abertura do Concílio, Gaudete Mater Ecclesia (Alegre-se a Santa Mãe Igreja), a sua confiança na presença de Deus a agir na história. Tomava a opção de se demarcar daqueles a quem chama “profetas da desgraça”, que «anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo». Serão «almas» ardorosas no zelo, mas que não têm «grande sentido de discrição e moderação». Não vendo «senão prevaricações e ruínas», «vão repetindo que a nossa época, em comparação com as passadas, foi piorando; e portam-se como quem nada aprendeu da história, que é também mestra da vida».
Será na encíclica Pacem in terris (A paz na terra), texto de 1963, dedicado à paz como anseio de toda a humidade, que o Papa Roncalli irá explicitar o alcance da expressão, nomeando e problematizando os sinais-do-seu-tempo. A gradual ascensão económica e social das classes trabalhadoras (igual dignidade de trabalhadores e de dadores de trabalho), a descolonização e a emancipação política dos povos (igual dignidade de todos os povos) e a entrada das mulheres na vida pública (igual dignidade de mulheres e de homens) foram as três características que João XXIII identificou como sinais de amadurecimento da história. Perante eles, a Igreja, bem mais habituada a apresentar-se até então como “mestra”, assumia também o lugar de “aprendiz”. Reconhece-se devedora do processo histórico, rompe com a identificação da cultura católica com a imutabilidade e supera a suspeição de princípio em relação a qualquer mudança, como sendo traço da cultura “mundana” a rejeitar. Por entre as linhas da história, curvas tantas vezes, reconhece-se haver forças evangélicas a agir, que amadurecem em determinados movimentos sociais e em novas formas culturais. Honrar a realidade “secular” e reconhecer nela densidade espiritual e fecundidade evangélica é assumido como forma de profecia eclesial.
Não deixa, porém, de ser curioso que aquilo que se reconhecia nos anos sessenta como “sinais dos tempos” – repetindo, o reconhecimento de que o trabalho é um valor fundamental, de que todos os povos têm a mesma dignidade, de que a mulher não é “naturalmente” inferior ao homem e que, por isso, pode exercer, tal como ele, autoridade pública – tenha sido considerado e combatido até então e durante mais de um século como sendo “erros modernos”. Hoje, faz-nos bem reconhecer com humildade esta passagem. A título de exemplo da sensibilidade anti modernista que marcava a Igreja de então e que irá perdurar até ao Vaticano II, poderá ser instrutiva a leitura de alguns documentos papais – para sermos honestos, esta sensibilidade perdura ainda hoje sempre que a identidade cristã pretende afirmar-se compacta e separada, à parte do “mundo”, funcionando em lógica paralela, rejeitando, à partida, como indevida e sinal de degradação qualquer mudança cultural que o tempo vai gerando, e sempre que não reconhece nem honra a realidade, as inquietações, as vidas tal como são, defendendo-se delas. Por exemplo, Mirare vos (MV, Creio-vos admirados), de 1832, e Quanta cura (QC, Com quanto cuidado), de 1864, textos onde os papas Gregório XVI e Pio IX, respetivamente, enumeram, lamentam e acusam o que identificam como principais erros do seu tempo, ou Vehementer nos (VN, A nossa alma está cheia de dolorosa solicitude), encíclica que Pio X dirige à Igreja de França em 1906, condenando como «tese absolutamente falsa e erro pernicioso» a separação entre Igreja e Estado.
Compreendendo-se como sistema inquestionável, parecia à Igreja poder continuar a proclamar-se imutável desde as suas origens, removendo como inexistente o seu real metabolismo histórico, como se a forma eclesial de então tivesse sido a mesma desde o início e não fosse necessariamente marcada por situações culturais específicas e, por isso, contingentes e parciais. Aquilo que o processo histórico estava, então, a gerar e que punha em causa a ordem vigente, supostamente a ordem natural das coisas querida por Deus, era tido como erro a denunciar e a combater. Recorde-se o Syllabus de Pio IX, de 1864, lista dos «principais erros da nossa era». Não precisando de escutar a história, a Igreja recusava-se a ser questionada pelos processos históricos que punham em causa as suas categorias, práticas e estruturas. Quando a realidade se compreendia de forma dinâmica, histórica e processual, insistia forçá-la a corresponder uma ideia estática, a-histórica e imóvel. Ao recusar deixar-se interpelar pelos movimentos culturais e a deixar-se interrogar por tradições diferentes, acabava por não reconhecer os sinais que o Espírito lhe estava a dar, arriscando confundir o evangelho com categorias, formulações e formas culturais herdadas do passado, já incapazes de conter e de realizar a força evangélica. Para ser fiel à força do evangelho parecia ter de conservar formas culturais, confundido estas com aquele. De facto, a fidelidade parecia ser mais às formas culturais do que à força do evangelho. Quando a sociedade se abria, a Igreja fechava-se ainda mais; quando a sociedade passava a compreender-se na mudança, a Igreja insistia na rigidez e na imutabilidade; quando a sociedade reclamava dignidade, a Igreja defendia a honra; quando a sociedade proclamava a igualdade, a Igreja defendia a diferença hierárquica entre homem e mulher, entre clérigos e leigos; quando a sociedade reclamava liberdade, a Igreja reforçava a autoridade. Desse modo considerou, por exemplo, «sentença absurda e errónea», um «disparate», a tese que «afirma a liberdade de consciência» (MV 10); pôs a liberdade de imprensa entre as «doutrinas monstruosas», «nunca condenada suficientemente» (MV 11); reafirmou que a «Igreja é por essência uma sociedade desigual», constituída por duas categorias de pessoas, os pastores e a multidão de fiéis, categorias tão distintas entre si que «só no corpo pastoral residem o direito e autoridade necessária para promover e dirigir todos os membros ao fim da sociedade», não tendo as fiéis «outro dever senão o de se deixar conduzir» e, como «rebanho dócil, seguir os seus Pastores» (VN 22). Supostamente, tudo por fidelidade à “ordem natural das coisas” que é expressão da “vontade de Deus”.
No Vaticano II, iremos encontrar um espírito e uma letra bem diferentes. Afinal, aquela ordem precedente manifestava ser mais cultural do que natural e a vontade de Deus parecia manifestar-se mais na dignidade de todos do que na superioridade de alguns. Afinal, Deus também podia falar numa sociedade aberta e ser reconhecido na mudança e no progresso da história. Afinal, a igualdade e a liberdade não eram menos evangélicas do que a autoridade e a hierarquização de pessoas e de classes, nem acolher diferenças era menos traço evangélico do que preservar a honra a todo o custo e impor padrões uniformizadores tendentes a excluir. Afinal, não só a natureza mas também as culturas eram livro no qual Deus escreve, desde logo porque a natureza se declina sempre culturalmente. O que há bem poucos anos tinha sido combatido como “erros do mundo” era, agora, reconhecido como “sinais de Deus”, a merecer atenção, auscultação e cuidado. Dispor-se a “ler os sinais dos tempos” traduzia, por isso e desde logo, o desejo de coser rasgões importantes e de superar oposições entre Palavra de Deus e mundo, Igreja e sociedade, fé e cultura, autoridade e liberdade, espiritualidade e vida quotidiana. Não se confundindo, não se deveriam separar e, ainda menos, excluir. Significava, além disso, o dever de olhar não apenas para trás, para a herança passada a conservar como se conserva um museu (uma coisa que se tem), mas para “o aqui e agora” e para o “entre nós” como tempo e lugar favoráveis onde a promessa de Reino já se está a realizar (uma abertura promissora, um “ponto de fuga”, um “ainda não” que, porém, já se torna real). No n. 11 da constituição Gaudium et spes (GS), o Vaticano II vem declarar que «o Povo de Deus, movido pela fé com que acredita ser conduzido pelo Espírito do Senhor, o qual enche o universo, esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus». No n. 44, declara não ignorar quanto a Igreja «recebeu da história e da evolução do género humano» e que é seu dever, «com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da palavra de Deus, de modo que a verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente», «tudo isto com o fim de adaptar o Evangelho à capacidade de compreensão de todos e às exigências dos sábios». Expor-se à aprendizagem com outros, abrir-se e dar voz a outras instâncias, desde logo como gesto de hospitalidade da realidade que se reconhece ser misteriosamente habitada por Deus, é o processo com o qual a Igreja se comprometeu no último concílio.
Cabe, por isso, manter viva a atenção aos sinais do Espírito que o tempo continua a dar, também hoje, e reconhecer, bendizer e cuidar das muitas formas com que o bem se vai revelando e amadurecendo, por vezes de forma inédita e em lugares improváveis. Se nos ativermos aos traços socioculturais identificados por João XXIII, é dever da Igreja interrogar-se sobre a dignidade a reconhecer no universo das questões do trabalho e como maturam aí sinais do Reino; sobre o universo da vida social, das relações políticas, da cooperação entre povos, sendo particularmente eloquente a sensibilidade atual à ecologia como questão integral e lugar amplo de cuidado e de tutela; sobre o que ainda significa, hoje, o reconhecimento da igualdade entre homem e mulher – no caso concreto do lugar da mulher na Igreja e do seu acesso ao ministério ordenado, as interrogações ganharão outra densidade se o tema for reconhecido como um “sinal dos tempos” e não como um “erro moderno” ou uma “reivindicação pós-moderna”, como, por vezes, ainda parece ser tido. A estes campos, poderemos acrescentar todo o universo de novas formas de relação afetiva e de convivência humana que alargam hoje o horizonte do real: na sua complexidade, possíveis ambiguidades e pressões ideológicas, que bem se revela aí, em experiências e relações reais, a reconhecer e a cuidar?; estará a acontecer aí algo que pede, desde logo, atitudes que apontam para o coração do evangelho e o dilatam?
Dito isto, se tem razão o teólogo franco-alemão Christoph Theobald, caberá ter consciência viva de que o quadro antropológico e social em que, hoje, a Igreja se coloca para ler a realidade como lugar habitado por Deus é já muito diferente daquele dos anos sessenta do século passado em que João XXIII exerceu o seu pontificado e se deu o grande acontecimento do Vaticano II. O que Theobald identifica como processo de “exculturação” não cessa de avançar, ou seja, o movimento de desaparecimento lento daquela matriz cultural formada pelo cristianismo ocidental que gerou um humanismo sensível tanto aos desafios da liberdade e da moral como às questões limite do sentido da vida e da morte e uma visão particular de humanidade e de mundo que funcionou como terreno “humanista” comum. Por outro lado, estratégias militantes de recristianização, já de si muito problemáticas, parecem improcedentes, desde logo porque é profunda e, a quanto parece, irreversível a transformação da relação entre comunidades cristãs e contextos sociais e culturais secularizados. Novas condições do mundo e inédito ordenamento das relações, pelo menos no mundo ocidental, são condições de base com as quais a Igreja deverá contar. Será nelas que o mandato bíblico a ler os sinais dos tempos continua vivo e válido. Se, do ponto de vista do evangelho, “hoje é o tempo favorável”, tais condições não serão menos favoráveis: não as faz desfavoráveis o facto de porem em causa falsas seguranças e inércias cómodas, nem o facto de darem que pensar (mais) e que fazer (melhor). Se reconhecermos a interdependência como uma bênção, que resista à tentação permanente do individualismo e do narcisismo ou, então, do domínio e da supremacia, e se virmos as parcialidades individuais e coletivas de que somos feitos como possibilidade de futuro, contra a tentação de uma unidade feita sem diferenças, de um nós que se afirma por exclusão de quem não dos nossos ou como nós, o caminho para um mundo mais humano já parece promissor. Se o for, será também certamente caminho de Deus e para Deus.
Poderão apontar neste sentido os sinais que Deus dá neste nosso tempo? GS, no n. 31, oferece uma chave de leitura promissora e partilhável, também com quem não se revê nem se compreende no quadro da mundividência cristã: «podemos legitimamente pensar que o destino futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações vindoiras razões de viver e de esperar».
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