Quando se perde a razão e se corrompe a religiãoJosé Frazão Correia SJDiretor da Revista Brotéria

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A violência agarra-se-nos à carne como uma segunda pele. Atesta-o à saciedade a história da humanidade. Com demasiada frequência, assume a forma da guerra. A razão e a religião, se fossem fiéis à sua verdade mais íntima, seriam dispositivos à altura de inibir as disposições humanas à violência e de interromper o seu decurso. Porém, são facilmente usadas para a justificar e a promover. Até aos nossos dias, a história da guerra cruza-se demasiadas vezes com a experiência religiosa, deixando a religião em dificuldade diante de quem a acusa de ser, à partida, causa e fator potenciador de violência. A razão, por seu lado, que tende a apresentar-se livre de crenças e de paixões e, por isso, capaz de ver clara e distintamente, suporta demasiadas vezes ideologias que defendem a arbitrariedade de uma suposta verdade que não tem de dar razões de si, nem tem de persuadir da sua justiça – acaba, ela mesma, por legitimar a violência mais irracional, gratuita e bruta. Quando se reduz ao registo técnico-científico da mera aplicação instrumental, eticamente neutra, a razão faz-se agente potenciador da eficácia devastadora da violência.

Na Ucrânia, assistimos à mesma desumanidade, ao sacrifício da inteligência e à corrupção da fé religiosa. A razão torna-se insensível e insensata. A religião presta-se à instrumentalização para fins que lhe são estranhos e à legitimação da injustiça. Choca a insensibilidade da razão a tanta destruição, a tanto sofrimento e morte. Mesmo procurando entender as particularidades da história da Rússia e atender às razões aduzidas para que se tenha chegado aonde se chegou, confunde-nos a insensatez das justificações do Presidente Putin para invadir a Ucrânia e querer aniquilá-la pela guerra como Estado soberano e livre. Até os jogos de palavras são desonestos: não é porque se lhe dá o nome de “operação militar especial” que deixa de ser guerra.  Confunde-nos o que parece ser a falta de empenho efetivo das partes e das potências mundiais nas negociações diplomáticas em iniciativas de cessar-fogo e de paz. Fica a dúvida se tudo o que tem sido feito é tudo o que se poderia fazer. Não parece. Confunde-nos, depois, a ameaça de recorrer a armas nucleares, a facilidade com que se anunciam admiráveis aumentos dos orçamentos militares e a experimentação de armamento sofisticadíssimo, apresentado, por vezes, de modo leviano, como se de brinquedos se tratasse. Confunde-nos a passagem da defesa legítima da vítima ao encorajamento da contraofensiva que leve ao aniquilamento do agressor. As razões são muitas e complexas, claro. Mas toda esta realidade, no seu conjunto, não deixa de ser absurda e de ter um quê de obscenidade gratuita.

Enquanto se perde a razão, corrompe-se a religião, que fica muito próxima do fanatismo surdo e cego. Choca muitíssimo que o cristianismo volte a ser envolvido ou se deixe envolver neste atoleiro de insensibilidade e de insensatez (recorde-se que, na Ucrânia, existem quatro Igrejas cristãs: a ortodoxa em comunhão com Moscovo; a ortodoxa em comunhão com Constantinopla; a ortodoxa autocéfala; a católica de rito bizantino). Neste capítulo, o Patriarca ortodoxo de Moscovo, Cirilo, tem sido o porta-voz mais qualificado e audível, apoiando a guerra, dando-lhe cobertura teológica e aspergindo-a de alcance espiritual. Eventuais vozes dissonantes ficarão anuladas. Kathy Rousselet, no artigo que publicamos no presente número da Brotéria, menciona Onúfrio, metropolita ortodoxo de Kyiv e de toda a Ucrânia, em comunhão com Moscovo, que condenou mais do que uma vez a guerra, distinguindo os decisores do conjunto do povo russo. Também o metropolita Hilarion Alfeev, sucessor de Cirilo no departamento de relações exteriores do patriarcado de Moscovo, se mostrou publicamente preocupado com as consequências nefastas da guerra para a própria Rússia. Enzo Bianchi, que cultiva, há anos, estreitas relações ecuménicas com o mundo ortodoxo e mantém contactos pessoais com muitos dos seus líderes, em entrevista ao jornal La Stampa, de 3 de abril, recordava que, paralelamente ao lideres pró-Putin, também do lado da Ucrânia se invoca Deus contra os inimigos, se abençoam armas, se incentivam os combatentes a esmagar os inimigos e os fiéis a maldizer o Patriarca Cirilo. Infelizmente, o livro desta guerra terá também os seus capítulos dedicados à religião, que exporão as feridas profundas infligidas às relações ecuménicas.

Em entrevista ao Corriere della Sera, no passado dia 3 de maio, o Papa Francisco referia que, dos quarenta minutos da conversa que tivera por vídeo com o Patriarca de Moscovo, a 16 de março, os primeiros vinte tinham sido usados por Cirilo para justificar a guerra. Na base da sua posição, menciona Kathy Rousselet no mesmo artigo, estará o entendimento teológico do dever messiânico da Rússia e do momento histórico oportuno para o seu cumprimento. Refere a autora que, hoje, face aos acontecimentos, colhe-se melhor o alcance das palavras pronunciadas por Cirilo em 2019, aquando da separação da Igreja ortodoxa da Ucrânia do Patriarcado de Moscovo, ou seja, de que a defesa do “único povo ortodoxo da Santa Rússia unida” não seria uma “tarefa geopolítica” ou uma “ideia imperial” de Moscovo, mas uma “ideia espiritual”, com traços apocalípticos e alcance escatológico. Identidade cristã, posições ideológicas, estratégias geopolíticas, mitificação do passado, revisionismo histórico, nacionalismo, cruzada contra o suposto reino do mal vindo do ocidente misturam-se e confundem-se de forma literalmente explosiva. Já com a guerra começada, caucionando a invasão russa da Ucrânia, Cirilo voltou a evocar a missão espiritual de unificação dos povos russo e ucraniano e de combate à degradação moral do Ocidente secularizado e decadente por parte da ortodoxia eslava.

A justificação e o apoio à guerra são perturbadores. Tornou-se insuportável ver o cristianismo associado, de novo, ao imaginário da cruzada que une o braço da cruz ao braço da espada. Não será, porém, a elevação do estandarte da justificação teológica a tornar sensata tamanha irracionalidade, como não será a exaltação de uma qualquer missão espiritual ou vocação messiânica a fazer com que o mal que a guerra gera possa ser chamado bem.

Entre os derrotados, estão certamente o Evangelho e o cristianismo, associados que ficam à violência, à humilhação, à afirmação de si pela negação da vida de outros. Mas esta associação com o Evangelho, mesmo que fosse com o bom propósito de defender os “valores cristãos” ou de estender o “Reino de Deus”, é de todo indevida e inaceitável, importa reafirmá-lo com clareza, seja ela feita pela autoridade eclesiástica mais autorizada, pelo cristão mais rude ou por uma qualquer força política ou líder com vocação messiânica que se apresente devotado à defesa da fé. A fé cristã dispensa e deve recusar sem hesitação este tipo de defesa, porque não passa, de facto, de corrupção da fé. Vale na Rússia como na Hungria ou na Polónia, em França como em Itália. E vale também entre nós. A verdade que não persuada da sua justiça, mesmo que seja anunciada e defendida em nome de Deus, não é digna de crédito nem de assentimento. Parafraseando o teólogo Pierangelo Sequeri, o traço inédito e insuperável da fé cristã é a negação do valor de revelação divina a toda a violência homicida que seja justificada ou imposta em nome de Deus. A separação de Deus e do Evangelho de Jesus de qualquer forma de violência feita sobre outrem, essa sim, é o sigilo da vitória da verdade cristã e do heroísmo da fé.

Impõe-se, por isso, a separação inequívoca do Evangelho e da fé cristã da violência homicida – mesmo do ponto de vista da legitimidade moral da guerra, hoje, os meios tecnológicos, os níveis de devastação e os vícios internos ao ato bélico dificilmente o tornam justificável. Não se trata de irenismo, de pacifismo de moda ou de promoção de reconciliações a preço de saldo. Trata-se, sim, de regressar ao Evangelho sine glossa e de assumir o “custo da graça”, a expressão do teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer, morto pelos nazis no final da Segunda Guerra Mundial. A identidade cristã não é um pin que se exibe na lapela e está longíssima de se esgotar numa cruz que se pendure na parede. Passa pela graça custosa da autenticidade e da coerência com o Evangelho em cada momento histórico. O exemplo é Jesus Cristo, o Crucificado que, na bela síntese de P. Sequeri, «é totalmente vítima de uma violência injustificada e totalmente protagonista de uma dedicação incondicionada. [É figura] do ódio que podia ser evitado mas não o foi e é figura do amor que podia ser evitado mas também não o foi» (Il Dio affidabile, 544).

Se tanta violência poderia ser evitada nesta guerra e, dramaticamente, não o é, aos cristãos e às igrejas, sejam elas católicas, ortodoxas ou protestantes, cabe realizar a justiça – não menos do que a justiça – de um amor que também não pode ser exigido, mas que é livremente escolhido, mesmo se contra a própria carne (imaginamos o quanto seja difícil para um ucraniano). Será, ele mesmo, a defender publicamente a verdade e a promover a justiça, a cuidar das vítimas e a acusar os agressores. Na encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco dedicou vários parágrafos ao que chamou “amor político” (nn. 176-192). Os cristãos, nas suas impossibilidades, abrem-se livremente à possibilidade de um amor não devido nem exigível, excessivo e mais do que necessário, o único, porém, que, de verdade, quebra a cadeia da violência, cura do veneno do ressentimento e anula o impulso a repagar com mal o mal já sofrido. É ele o logos-razão e o pathos-paixão, o nomos-lei e a pietas-piedade que a fé cristã professa e, a custo, cultiva, mesmo se contra as potestades deste mundo.

 

 

— P. José Frazão Correia SJ
Editorial Brotéria Maio/Junho 2022

 

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