No número de outubro de 2022, a Brotéria publicou o ensaio “A questão da (homo)sexualidade na tradição católica”, de João Manuel Silva SJ, com o subtítulo “Entre doutrina e realidade, a urgência de um novo paradigma”[1]. O autor escreveu a nosso pedido, tendo em conta os estudos académicos que fez sobre o tema, na área da teologia moral, no Boston College, EUA, e a sua experiência pastoral. Na conclusão do artigo, João Manuel Silva SJ defende que «a nova fase de receção do Concílio [Vaticano II] iniciada pelo pontificado do Papa Francisco, na qual AL [Amoris Laetitia] é um marco incontornável, reclama uma urgente harmonização da doutrina católica» sobre a sexualidade, em geral, e sobre homossexualidade, em particular, de modo «a reconhecer que a vida das pessoas em uniões homossexuais possa ser “uma real possibilidade de promoção da vida e da fé”». Acrescenta que, «para o bem da Igreja e para a vitalidade da Tradição, enquanto transmissão e tradução da revelação de Cristo a cada tempo, urge criar condições para que estes fenómenos que se nos apresentam no presente momento da história possam ser lidos e discernidos em fidelidade à Palavra de Deus, à Tradição da Igreja e à experiência concreta dos fiéis». Reconhecendo «que uma relação entre pessoas do mesmo sexo possa ser geradora de bem», defende uma «renovação doutrinal», que seja capaz de «encorajar novos percursos de santificação e de integração no corpo eclesial para todos aqueles que procuram seguir Jesus pelo caminho, na verdade daquilo que são e no modo como afetiva e sexualmente se compreendem».
De entre as reações que recebemos ao ensaio, umas muito favoráveis, outras bastante críticas, foi-nos proposto por Margarida Miranda o artigo “Igreja e (homo)sexualidade: a visão outra”. Se tem razão J. L. Borges de que um livro que não inclua o seu contra-livro é considerado incompleto, este artigo pode ser lido como contra-artigo do anterior: Margarida Miranda reafirma com força aquilo em relação a que João Manuel Silva SJ defende ter de haver avanços.
Para sermos honestos, situamo-nos teologicamente muito distantes da abordagem, do tom e, acima de tudo, dos pressupostos subjacentes à argumentação desenvolvida por Margarida Miranda: do modo como usa a autoridade da Escritura, da Tradição e do Magistério; do valor teológico que reconhece, ou não, à experiência humana e à sinodalidade, às mudanças culturais e à evolução da história; do entendimento que tem da relação entre Tradição e liberdade individual, entre doutrina e pastoral. Tratando-se a sexualidade e, dentro desta, a homossexualidade, assunto tão exigente quanto incontornável, quer na vida interna da Igreja, quer na sua relação com a sociedade e as culturas contemporâneas – mesmo que por vezes o seja, é demasiado fácil associá-lo, sem mais, a uma simples bandeira ideológica ou a lobbies de pressão – parece-nos importante contribuir para que se ponham em cima da mesa da reflexão eclesial, com a maior clareza possível, diferentes sensibilidades, pressupostos e argumentos, de modo a que, idealmente, se possam confrontar, corrigir e enriquecer mutuamente. Por isso, pedimos a João Manuel Silva SJ que escrevesse. Pelo mesmo motivo, decidimos publicar o artigo de Margarida Miranda. Interessa-nos a busca da verdade, na convicção de que o pensar reto implica escuta generosa e diálogo franco. Para que o seja, deverá ser capaz de abrir e de alagar, de elevar e de fazer respirar. Se fechasse e apoucasse, se rebaixasse e sufocasse revelar-se-ia injusto, mesmo que pretendesse estar da parte da verdade. Favorecer um pensamento aberto, incompleto e imaginativo, que seja capaz de se expor e de se deixar pôr à prova no encontro e no diálogo é uma forma concreta de realizar a hospitalidade, forma visível e significativa de entender e de realizar a identidade cristã e de crescer em humanidade.
O estilo, a argumentação e as conclusões de cada um dos artigos, o leitor poderá ajuizar por si próprio. São representativos de abordagens e de entendimentos muito diferentes, por vezes opostos. Um que tende a interpretar toda a evolução na antropologia teológica e na moral sexual como risco de ofensa à verdade evangélica e à suposta doutrina de sempre, entrando em rutura com a tradição da Igreja. A fidelidade estaria toda na conservação e proteção de quanto se recebeu do passado, tendo o passado “clássico” valor paradigmático. O outro interpreta o quadro existencial e cultural atual como um lugar teológico através do qual o Espírito Santo continua a falar à Igreja, pedindo, por isso, atenção e inteligência teológica (sempre incompleta), evolução doutrinal (a mudança não põe necessariamente em causa a verdade e a unidade da revelação) e maior coerência pastoral (o critério pastoral enunciado pelo Papa João XXIII na abertura do Vaticano II assume que o anúncio do Evangelho deve considerar necessariamente aqueles a quem se dirige, não sendo, por isso, meros destinatários passivos). Curiosamente, cada uma das posições reclama fidelidade à mesma verdade evangélica. Da nossa parte, parece-nos importante recordar que foi este o caminho de aggiornamento que o Concílio Vaticano II quis para a Igreja e que é por ele que caberá continuar a avançar, já que a autoridade do último concílio ecuménico é a que vincula a Igreja no presente. Rotulá-lo de concílio “pastoral” para diminuir a sua autoridade “doutrinal” é um argumento pobre, que desconsidera o significado que João XXIII e o próprio Concílio deram ao qualificativo “pastoral”[2].
Há que reconhecer que tais diferenças de posicionamento têm, hoje, grande potencial de polarização e de divisão dentro da Igreja, sobretudo se não forem capazes de explicitar e de discutir os respetivos pressupostos teológicos sobre os quais se erguem, tendo por referência a autoridade doutrinal do Vaticano II. Mais uma vez, o que se entende por tradição da Igreja, que valor teológico se atribui à experiência, à história e à cultura, como se articulam autoridade e liberdade, doutrina e pastoral, que autoridade se atribui aos “sinais dos tempos”, entre outros elementos.
No que diz respeito à matéria específica tratada nos dois artigos, partilhamos a convicção de quem defende o investimento na procura de novas formulações e distinções teológicas, de novas instruções magisteriais e de novas disposições práticas, como caminho outro em relação às estratégias mais comuns que resultarão, quer de inércia e de temor, quer de incapacidade de lidar com a realidade existencial e de argumentar as posições da Igreja, dentro da própria Igreja e no espaço público, quer, ainda, de sectarismos de causas. Não parece totalmente honesto tentar ficar em equilíbrio entre afirmações abstratas de respeito e práticas reais de marginalização e de invisibilidade nas comunidades eclesiais. Na mesma linha, parece insuficiente ficar na simples distinção entre tendência homossexual, assunção pessoal dessa orientação e realização de atos sexuais. Ficar na distinção entre pessoa e atos, ainda que seja moralmente relevante, parece-nos que, nesta matéria, evita a questão de fundo: a homossexualidade é uma patologia e um pecado/ofensa à castidade? Se o é, a pessoa em causa ou se cura (há quem o defenda) ou se arrepende (o que significaria, de facto?). Esse é o único caminho que terá a percorrer. Pelo contrário, se se trata de uma condição humana – o Papa Francisco declarou recentemente que “ser homossexual não é um crime, é uma condição humana”[3] –, então, a identidade de uma pessoa homossexual não pode ser separada das suas ações, nem parece consequente impor-lhe simplesmente a continência, não como vocação ou escolha livre, mas como imposição para toda a vida. Se é condição humana, terá de ser lugar tanto de realização humana como de vida cristã. Que bens se poderão, então, reconhecer em relações que nascem nesse lugar? Consequentemente, o exercício da sexualidade poderia ter uma certa autonomia em relação à geração de filhos? Na verdade, esta questão diz respeito, não só a relações homossexuais, mas também às heterossexuais, já que, se a prática sexual tem a geração como primeira (e principal) justificação e bem a perseguir, o matrimónio é o único lugar moralmente lícito para o seu exercício: qualquer ato sexual antes ou fora do matrimónio é considerado pecado grave. Mas seria possível reconhecer outras formas de vida e de união onde reconhecer bem (bem pessoal e bem recíproco, suporte, fidelidade, etc.), mesmo sem terem a geração como horizonte? Nesse caso, além do carácter unitivo, como compreender o carácter fecundo?
Sem que se continue a atravessar estas questões, certamente não fáceis, parece-nos difícil lidar com esta matéria de forma coerente e consequente, quer dentro da Igreja quer no espaço público. Querer resolvê-la unicamente dentro de categorias como “pecado”, “ofensa à castidade”, “autocomprazimento infecundo”, “patologia”, “continência” afigura-se, existencial e culturalmente, insuficiente. Gera-se, desde logo, incoerência entre acompanhamentos pessoais (por muito que se queira reduzir o assunto a ideologia sociocultural, diz respeito a muitos cristãos e a muitas relações), formulações doutrinais e práticas das comunidades eclesiais. Ora, caberá reconhecer que a falta de coerência entre o que se pensa, o que se diz e o que se faz não sintoniza com o Evangelho. E haverá que reconhecer também que os documentos magisteriais disponíveis não facilitam a tarefa de superar as cisões entre a homossexualidade vista como pecado, ofensa à castidade, identidade viciosa, autocomprazimento infecundo, patologia (para alguns, crime), por um lado, e condição humana, por outro; entre o acolhimento pessoal e a invisibilidade eclesial; entre o acolhimento declarado da pessoa e a exclusão de fundo pela avaliação que se faz das suas tendências e ações.
Como afirma o beneditino francês Ghislain Lafont, «sempre que a Igreja teve medo do humano, das suas manifestações, do seu desenvolvimento ou, por outro lado, sempre que renunciou, por razões espirituais, ao dever de pensar e impediu os seus próprios fiéis de o fazerem, agiu contra o Evangelho que devia anunciar»[4]. A ser verdade, será um ato de responsabilidade eclesial continuar a empenhar a teologia e a pastoral neste campo, cabendo à autoridade do Magistério autorizar o respiro e a fecundidade da Tradição, em diálogo vivo, corajoso e paciente com o Evangelho e o momento sociocultural presente.
Procurando um certo recuo em relação ao tema específico da (homo)sexualidade, gostaríamos de destacar outras questões e interrogações que nos parece estarem na base da reflexão sobre o tema e que entendemos ser fundamental continuar a explorar de forma crítica.
A EXPERIÊNCIA, ENTRE LIBERDADE E AUTORIDADE
É do teólogo luterano alemão Eberhard Jüngel (1934-2021) o mote de que cabe ao teólogo de profissão, ou simplesmente à inteligência teológica elementar partilhada pelos fiéis, o duplo dever de clarificar os fenómenos e de os salvar. Desatende-se a essa dupla tarefa quando, com a clarificação demasiado rígida, se destrói o fenómeno (o pensamento da realidade acaba por anular a própria realidade), ou, então, quando o fenómeno se impõe, dispensando ou recusando ser iluminado de fora (a realidade recusa submeter-se a qualquer clarificação crítica). Em matérias humanamente complexas, cultural e religiosamente sensíveis como são aquelas que se referem à sexualidade, pode cair-se em dois extremos. Por um lado, na autorreferencialidade e no relativismo cultural de as impor por si mesmas, quase de forma a-moral, furtando-se a qualquer crítica e recusando qualquer autoridade heterónoma ou horizonte de verdade. Por outro, pode cair-se no risco de uma apologética eclesial que, em nome da defesa de uma verdade abstrata e de uma suposta clarificação a partir de princípios recebidos de um passado idealizado e a-histórico, como se a sua maturação e a sua formulação não dependessem, também elas, de condições históricas, culturais e eclesiais particulares, desconsidera os contornos da realidade presente, tidos como indevidos, sintoma, sem mais, de corrupção e desordem.
No vasto campo que é a sexualidade, cujo entendimento tem sempre e inevitavelmente uma modelação histórica e cultural, seria dificilmente aceitável que a referência à verdade evangélica, à qual a fé cristã se refaz, passasse por uma simplificação da realidade, com os seus contornos específicos, de tal modo que a desconsiderasse. Se há algo que cabe à fé cristã é o cultivo, à luz do Evangelho, de uma hermenêutica da complexidade da realidade e do quadro cultural em que assume contornos específicos. E porque a sexualidade não é uma abstração, mas uma realidade que diz respeito a pessoas concretas, à experiência que fazem de si próprias, ao modo como se compreendem e se exprimem, o desejo de clarificação desse fenómeno não poderá ser feito à revelia das existências reais e do quadro cultural em que se compreendem. Também S. Agostinho ou S. Tomás pensaram o humano no quadro de uma cultura. Se a leram à luz do Evangelho, não é menos verdade que leram o Evangelho dentro da respetiva cultura. Dessa maneira inculturada, fizeram nova teologia, fizeram avançar a doutrina, deram vida à tradição.
Ora, se há campo em que a modernidade teve fortíssimas repercussões foi no entendimento da sexualidade, independentemente do juízo antropológico e moral que se possa fazer delas. O que seria difícil de justificar e de aceitar é que a reflexão moral atual da Igreja sobre a sexualidade fizesse de conta de que essas mudanças não aconteceram ou que as considerasse imediatamente indevidas e desordenadas: a passagem do sexo à sexualidade; do ato sexual entendido essencialmente como instrumento para alcançar o fim da geração de filhos à compreensão mais ampla do bem que é a própria relação e do bem que esta é para cada uma das pessoas implicadas nela; do prazer visto essencialmente como desordenado a valor de experiência e de expressão de amor. Ou, então, que se quisessem identificar como sendo de direito divino entendimentos precedentes, tidos como os únicos legítimos, quando foram, também eles, necessariamente modelados por culturas específicas, em momentos históricos particulares. Neste sentido, o apelo à verdade da revelação cristã não pode significar a defesa intransigente de uma antropologia abstrata e fechada a novas condições históricas, culturais e eclesiais, como se só o passado tivesse autoridade para dizer o humano e como se o presente e o futuro não fossem mais do que declinação de uma identidade já acabada, insensível e imune ao tempo que muda e ao modo como as existências e as comunidades se compreendem e exprimem nele.
Será preciso reconhecer que ainda vão grandes distâncias entre a repetição do princípio formulado pelo Papa Francisco de que «a realidade é mais importante do que a ideia» (Evangelii Gaudium, nn.231-233), a sua apropriação como critério teológico e a sua realização como guia de atuação pastoral. Sendo fácil de enunciar, é difícil de assumir como traço enformador de uma forma eclesial de pensamento e de ação. Neste sentido, não parece consequente que à suposta autorreferencialidade, ao subjetivismo ou ao relativismo com que as matérias ligadas à sexualidade possam ser, hoje, abordadas do ponto de vista individual e cultural, se oponha idêntica autorreferencialidade, agora eclesial, autoritarismo e rigidez doutrinal que desconsidere os sujeitos e a experiência que fazem de si mesmos. Se é certo que a experiência e a autoperceção não podem ser o único critério de avaliação moral, também dificilmente se aceitará que esta possa ser feita à revelia daquelas. Se há dado cultural sem o qual, hoje, não nos compreendemos, é a centralidade do sujeito livre, mesmo que esteja exposto a muitas derivas e que precise de muitos contrapesos (a obrigação moral, a responsabilidade ou a fraternidade, por exemplo). Ainda que se tenha afirmado contra a autoridade da Igreja, trata-se de uma herança incontornável da cultura moderna, que faremos corresponder sem dificuldade ao coração da verdade evangélica. Ora, se com a modernidade, a afirmação do princípio da liberdade e da dignidade de qualquer sujeito se fez de forma paralela à rejeição da autoridade, muito concretamente da Igreja, a luta anti-modernista travada pela Igreja, entre meados do século XIX e meados do século XX, contra as mudanças culturais que, então, se afirmavam, fez-se pela defesa da autoridade à custa da liberdade. Porque tal caminho conduziu a Igreja a um fechamento sobre si mesma, ressentido e estéril, o Concílio Vaticano II quis assumir uma relação bem diferente com o mundo – alterou o modo de o olhar e criou disponibilidade para aprender com ele –, reconhecendo, concretamente, a liberdade como expressão incontornável do reconhecimento da dignidade humana.
À Igreja e ao seu magistério, precisamente para não perder autoridade e não cair na paralisia, reduzindo a Tradição a peça de museu de um tempo ido – se permanecer intacta, morre; quando se reduz a forma institucional, torna-se força estéril –, cabe trabalhar teologicamente e dar expressão pastoral à articulação entre liberdade e autoridade, de modo que a afirmação de uma não implique a anulação da outra. A vida da Igreja, em génese permanente, vive da relação recíproca, por vezes tensional, entre ambas. A Tradição, que é testemunha de uma força espiritual, respirará nessa mesma articulação, na medida em que não disser simplesmente respeito à conservação fiel do património recebido, mas que, sem deixar de o fazer, implique igualmente o empenho criativo na realização das promessas de futuro ainda por cumprir. Não é apenas o passado e a sua estabilidade a ter autoridade sobre o presente (sobre como nos compreendemos como seres humanos sexuados e sobre o exercício da sexualidade, ou sobre o entendimento de como se realiza o carácter unitivo e fecundo de uma relação, por exemplo). Os movimentos criativos em curso no presente e as promessas de futuro também a tem. A fidelidade à Tradição é, por isso, fidelidade ao património recebido e fidelidade ao futuro por construir, na busca da realização mais plena da forma de Cristo: já somos e ainda haveremos de ser. Entretanto, temos o tempo presente como lugar de vida e de discernimento. Trata-se de um ato de atenção espiritual ao Espírito que circula nas páginas da Escritura, das existências reais e das culturas presentes. Por isso, é também ato de leitura. O Evangelho lê e ilumina a realidade, abrindo-a, elevando-a, corrigindo-a; a realidade lê o Evangelho, permitindo que diga algo que ainda não tinha podido dizer, por ainda não ter tido os leitores de agora. Ao Magistério cabe a autoridade de autorizar a continuação deste ato vivo de leitura, cuidando para que aconteça em fidelidade ao Evangelho de Jesus e ao seu Espírito que tanto inspira o texto sagrado e anima a vida da Igreja como age nas existências e nas culturas onde a vida acontece.
A (HOMO)SEXUALIDADE, ENTRE NATUREZA E CULTURA
«Sempre que se trata da vida humana, natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas». A afirmação é do Vaticano II, na Constituição Gaudium et Spes, n. 53. A ser assim, também quando se trata da sexualidade, importará conjugar natureza e cultura, sem as misturar, mas também sem as separar. Se a tendência cultural atual se inclina para sublinhar a cultura, desconsiderando a natureza (o sexo/a sexualidade teria que ver essencialmente com o quadro biográfico, social e cultural) e a exaltar o foco da experiência e da liberdade, reduzindo todo o campo a escolha e autodeterminação individual, independentemente do dado biológico ou de princípios morais heterónomos, o discurso eclesial tende a sublinhar a natureza, desconsiderando a cultura (o sexo/a sexualidade teria que ver essencialmente com a natureza, o dado biológico) e a evocar a autoridade da tradição e de princípios atemporais, caindo no risco de menorizar a experiência pessoal, de desconsiderar os quadros socioculturais dentro dos quais a natureza é sempre interpretada e de não considerar verdadeiramente a liberdade de consciência.
Quando se aborda este tema e se procura aprofundar a relação fundamental entre o dado natural-biológico e os contornos socioculturais, o discurso eclesial tende a inclinar-se para atribuir à natureza toda a autoridade, fazendo-a coincidir, sem mais, com a vontade de Deus. Interrogava-se S. Morra, no artigo que publicámos no passado número de janeiro da Brotéria: «o corpo como dado e o seu carácter sexuado são suficientes? Somos assim tão materialistas para pensarmos que as caraterísticas sexuais primárias, as que são conhecidas no momento do nascimento, dizem tudo o que somos? E o que acontece depois não diz nada?». Na verdade, não é apenas o dado biológico a determinar-me, já que é dentro de uma tradição que ganho consciência de mim, que me compreendo e que me exprimo. Por isso, que significará e como se poderá conjugar «a relação entre o dado biológico, que a língua anglo-saxónica chama sex, a determinação sexual e todo o alcance simbólico de papéis e de cultura já associados ao corpo biológico?»[5]. O ser humano – a sexualidade, as relações sexuais, o ato de gerar – não é simplesmente natural. Como humanos, somos seres de palavra, de consciência, de manualidade. Somos inteligentes, sensíveis e capazes de ação. Só o reino animal responde simplesmente à natureza. Aí, sim, a gestão do sexo é simplesmente natural. Mas não é isso que se espera do ser humano, que seja simplesmente natural. Por isso, convirá ter uma certa cautela em considerar, sem mais, “contra-natura” uma relação unicamente a partir de algumas diferenças fisiológicas ou biológicas. Se não podem ser desconsideradas (quando o género se impõe como ideologia cultural), não poderão ser absolutizadas (certos discursos eclesiais que evocam a natureza como dado bruto, culturalmente neutro). Em última instância, a cultura poderá suprir aquilo que não está ao alcance da natureza. Hoje parecer-nos-á caricato, mas tempos houve em que uma mulher a fazer desporto ou um transplante um coração também foram considerados “contra-natura”. De facto, o que é natural e o que é cultural não são evidências imediatas.
Pensemos ainda, a título de exemplo, no dado bíblico de que Deus “homem e mulher os criou” (cf. Gn 1,27). Desde logo, a criação tem como alcance teológico que o homem e a mulher não têm autodeterminação total sobre si mesmos. Há um “dado” a reconhecer como “dom” benevolente de Deus criador que abre possibilidades de realização futura (em linguagem teológica, a identidade humana é “protológica” e “escatológica”, tem uma origem que precede – somos criados à imagem e semelhança de Deus – e tem um destino de realização que atrai – alcançar a forma de Cristo). Porém, o que significa afirmar que, por natureza, o ser humano é homem e mulher? Será que esse dado natural-biológico é interpretado do mesmo modo ao longo dos tempos? Ser homem ou ser mulher no século I, na Idade Média, no século XIX ou no século XXI é exatamente o mesmo? Ser homem ou ser mulher na Europa é o mesmo que sê-lo em África ou na Ásia? De forma unânime, diremos que não, porque o dado biológico de ser homem ou ser mulher conjuga-se sempre num quadro sociocultural particular. Se a natureza é relevante e, mesmo, incontornável, não é menos relevante atender às mais variadas formas sociais, culturais e religiosas em que a natureza é declinada. As palavras e as práticas que têm acompanhado ao longo dos séculos o que significa ser homem ou mulher variam e evoluem, e mais deverão evoluir de modo a superar o que em tais palavras e em tais práticas retemos, hoje, como sendo injusto, sobretudo para a mulher. No futuro, outras palavras e outras práticas se seguirão, na busca do que é mais humano. Se hoje nos choca a escravatura ou a menorização na mulher, o que chocará de nós às gerações futuras?
Como consequência, poderemos afirmar serenamente que o ser humano, sem se separar da natureza, “naturalmente”, interpreta-a, muda-a e transforma-a. Por esta razão, convém acautelar-se de projetar na ordem natural o que é da ordem simbólica, social e religiosa ou de bloquear os processos socio-culturais, simplesmente porque não se conformam à natureza. No caso da teologia e das práticas cristãs, acresce o cuidado de não fazer corresponder a revelação ou a direito divino o que é da ordem da interpretação simbólico-social da natureza em determinados momentos da história. Tal como no passado, o Evangelho continuará a servir-nos de inspiração e de orientação.
[1] Brotéria 195-4 (2022): 262-273.
[2] Permitimo-nos reenviar para o nosso artigo “A índole pastoral da doutrina cristã: conservação e mudança”, em Brotéria 192-4 (2021): 351-363.
[3] Entrevista da Associated Press ao Papa Francisco, 25 de janeiro de 2023: https://apnews.com/article/a5cf2c1d450064b588ab3f41d3bf6994?utm_source=ForYou&utm_medium=HomePage&utm_id=Taboola
[4] Ghislain Lafont, Histoire théologique de l’Église catholique (Paris: Cerf, 1994), 457.
[5] Stella Morra, “Humanos sexuados: rosto, género e diferença”, em Brotéria 196-1 (2023): 69.