Porque eu reconheço os meus pecadosP. Francisco Mota SJBrotéria

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UM NOVO ENTENDIMENTO SOBRE O QUE O PECADO SIGNIFICA 

Em dezembro de 2022, a Brotéria recebeu o P. James Keenan SJ, professor no Boston College e teólogo moral com impacto muito para lá da realidade académica americana, para a última conferência do ano organizada dentro do ciclo “Construir pontes”. A comunicação que apresentou nasceu de um convite feito pela Brotéria com o objetivo de perceber como é que nos nossos dias e nas nossas sociedades urbanas se pode raciocinar moralmente. O que foi apresentado, partindo da necessidade de haver uma apropriação fundamental de conceitos como o reconhecimento e a vulnerabilidade, deu origem ao artigo que pode ser encontrado no número de março da Brotéria1. A comunicação está também disponível online no canal de YouTube da Brotéria.  

Uma parte significativa da conferência partiu do argumento central do livro publicado em 2022 com o título A History of Catholic Theological Ethics2. É uma obra indispensável na biblioteca de qualquer pessoa que tenha interesse em temas de teoria moral, de ética religiosa ou mesmo de ética fundamental. Logo no primeiro capítulo, Keenan oferece uma leitura de alguns dos temas chave presentes nos Evangelhos Sinópticos para entender a perspetiva moral do Novo Testamento. Um desses temas é o que se refere ao pecado, que, na tradição catequética atual da Igreja, se define com base em três critérios que têm de se reunir simultaneamente para que algo possa ter, na vida do crente, gravidade mortal: a) haver um ato grave, b) cometido com liberdade plena, c) em perfeita consciência. Esta visão doutrinal do pecado é simples, esquemática e elucidativa. Contudo, como Keenan aponta, é insuficiente e, no limite, nociva.  

O ponto principal levantado a este propósito é descrito de maneira muito breve: «entre as muitas lições sobre o pecado, existem, penso eu, três nos Evangelhos Sinópticos: que o pecado é não se deixar interpelar pelo amor; que, quando pecamos, fazemo-lo, não por fraqueza, mas por força ou capacidade; e, por fim, que, com muita frequência, não nos apercebemos de ter pecado» [22]. 

Para quem se depare com estas afirmações pela primeira vez, pode parecer surpreendente o que é dito. Pensar que o pecado não tem que ver com atos graves, praticados com liberdade e com consciência é desconcertante. Mas é o que se vê com frequência nos Sinópticos. O homem rico, em Lucas 16, fracassa em deixar-se interpelar pelo amor ao pobre Lázaro que jaz diante de sua casa; o homem que esconde o talento, em Mateus 25, não está para se apoquentar e pôr a render o que recebeu; o filho que, em Mateus 21, não foi trabalhar para o campo, apesar de dizer que o faria, tão pouco se importa com o resultado daquilo que faz. Vê-se também nos Sinópticos que o fariseu, que reza no templo, se orgulha da sua força e do que é capaz, desprezando, com isso, o publicano que tem atrás de si (Lucas 8); que o homem que não perdoa a dívida do seu empregado depois de ter visto a sua própria dívida ser perdoada tem tudo o que precisaria para saber perdoar aquele que tem uma dívida para consigo (Mateus 18); que na parábola do Bom Samaritano, em Lucas 10, o pecado do levita e do sacerdote não é o de terem roubado e atacado o homem à beira da estrada, mas sim o de o terem ignorado quando o poderiam ter visto. Finalmente, na parábola do Juízo Final, em Mateus 25, aquilo que leva à condenação é precisamente o facto de nem se ter a consciência de ter pecado (“quando é que te vimos nu, com fome, com sede...”). Como diz Keenan, o homem rico que não se apercebe da existência de Lázaro, os que são condenados no Juízo Final, o levita ou o sacerdote, «são pecadores, porque falharam em responder àquilo a que poderiam ter respondido. A sua capacidade ou competência são fulcrais; se nada tivessem podido fazer, não teriam qualquer culpa. Mas exatamente por terem a capacidade para responder e não terem respondido, aí mesmo se vê que os nossos pecados surgem de quando somos capazes e não de quando somos fracos» [23].  

 

A REALIDADE DOS ABUSOS NA IGREJA PORTUGUESA  

As últimas semanas têm permitido todo o tipo de comentários sobre a realidade dos abusos sexuais cometidos no seio da Igreja, motivados pela divulgação do relatório da Comissão Independente, no passado dia 13 de fevereiro, e das várias reações da Conferência Episcopal Portuguesa e outras ao longo das semanas seguintes. A versão final deste texto é escrita no dia 13 de março, pelo que pode incorrer em falhas de vários tipos aquando da sua publicação. Em todo o caso, a Brotéria sente a responsabilidade de não ignorar este assunto tão vital no momento presente da vida da Igreja. Os artigos de José Maria Brito SJ e de Eduardo Jorge Madureira Lopes são tentativas de contributos para entender de forma rigorosa e serena a complexidade deste assunto. Este editorial pretende também acrescentar algo a tudo o que tem vindo a ser dito e escrito. 

Seria importante que toda a Igreja tivesse presente as duas frases acima citadas de A History of Catholic Theological Ethics. Repeti-las não é demasiado: «são pecadores, porque falharam em responder àquilo a que poderiam ter respondido. A sua capacidade ou competência são fulcrais; se nada tivessem podido fazer, não teriam qualquer culpa. Mas exatamente por terem a capacidade para responder e não terem respondido, aí mesmo se vê que os nossos pecados surgem de quando somos capazes e não de quando somos fracos».  

Este é o ponto que a Igreja portuguesa não pode deixar de ter presente. O pecado eclesial (não o pessoal, que diz respeito aos abusadores, mas o que diz respeito ao corpo da Igreja) não está na consciência e na liberdade com que atos graves foram praticados. O pecado eclesial reside na falha em responder àquilo a que se poderia ter respondido. Em rigor, na falha em responder àquilo a que se deveria ter respondido. Não pensar deste modo e pensar de acordo com as notas da doutrina tradicional pode, no limite, ser apaziguador da consciência e profundamente desresponsabilizador: não conhecíamos totalmente a realidade, não tínhamos procedimentos na altura para lidar com ela ou o grau de consciência e conhecimento de toda esta situação mudou.  

Tudo isso é verdade. Contudo, nada disso é evangélico. Aqueles que tinham maior capacidade para responder não responderam: bispos, superiores religiosos, membros do clero, responsáveis pelas instituições nas quais os abusos aconteceram.3 Aqueles que mais se poderiam ter deixado interpelar não o fizeram. Pecaram por força do cargo que exerciam e não por fraqueza de terem sido empurrados para essa situação. Não se aperceberam de ter pecado, mas fizeram-no, mais não fosse por omissão. Enquanto esta consciência não se enraizar profundamente na vida da nossa Igreja, sobretudo entre todos os que nela detêm qualquer tipo de responsabilidade, continuaremos a tratar a realidade como se fosse uma questão e a justificar atabalhoadamente tudo o que aconteceu, defendendo-nos dos ataques destes e daqueles, encontrando razões para não se poder ter feito isto ou aquilo. Mas a realidade dos abusos, na vida da Igreja portuguesa, não é uma questão ou uma interrogação: é um facto, tenha que extensão e que composição sociológica tiver. E, a somar a isso, a realidade dos abusos na vida da Igreja portuguesa não é apenas falha: é pecado, pecado que diz respeito a si própria e aos seus, pecado que nasce de não se deixar interpelar pelo amor, de ter sido (no sentido em que Keenan usa o termo referido na secção anterior) demasiado forte para o reconhecer, de não se ter apercebido do que acontecia dentro das suas portas. E isso é o que não pode continuar a ser escondido.  

 

RESPOSTAS ESTRUTURAIS PARA PROBLEMAS ESTRUTURAIS 

Só com esta consciência de que a realidade dos abusos seja uma realidade e não uma questão, constituindo matéria de pecado e não de falha, é possível começar a desenhar estruturalmente novos caminhos para a vida da Igreja. Esse é o ponto que, em algum momento, terá de ser abordado. A reforma que a Igreja portuguesa precisa não serão memoriais, mas sim mudanças estruturais no seu funcionamento e edificação. E, desse ponto de vista estrutural, há pelo menos três temas que, em alguma altura, a Igreja portuguesa, como um todo, terá de enfrentar.  

O primeiro problema é o de não entender a diferença entre dizer e fazer. Pode parecer um comentário demasiado abstrato para quem não viva nos corredores da Igreja, mas não há muito que seja mais danoso para a Igreja do que este ponto. Bispos, superiores religiosos ou outros altos responsáveis, lamuriam-se, com frequência, por terem dito alguma coisa que acabou por não ser feita. E esgotam a sua autoridade no dizer, frustrando-se por o dizer não dar lugar muitas vezes ao fazer. Isto acontece em todos os âmbitos da vida da Igreja: na relação de bispos com o clero, na relação de superiores de ordens religiosas com as missões atribuídas aos seus membros, na relação de diretores de instituições com os seus funcionários. Acontece quando há falhas em relação à pobreza, à castidade e à obediência. Acontece quando há a necessidade de fazer mudanças de párocos, de superiores locais ou de diretores de obras sociais ou de ensino. A Igreja portuguesa espera que, quando alguma coisa seja dita, isso implique necessariamente que será feita. E quando não é feita, aqueles que disseram que se fizesse sentem-se de mãos atadas e desligam-se da resolução daquilo que têm em mãos.  

Uma parte significativa deste problema vem do facto de haver uma escassez enorme de medidas concretas de caráter intermédio e preventivo que um superior canónico possa aplicar como pena àqueles sobre quem detém autoridade. Em muitos casos, em cima da mesa, a única possibilidade a ponderar em situações de falha parece ser ou a da expulsão ou nada. É sintomático que neste mês que se seguiu à publicação do relatório da Comissão Independente a comunicação social viva obcecada com a ideia da suspensão dos padres. Uma medida desse tipo não deve e não pode ser a única possibilidade acessível a um bispo ou a um superior religioso num caso de indisciplina ou de abuso. Há um conjunto de outros passos que a lei canónica prevê (ou não prevê) e que deveriam ser considerados: retirar-se a possibilidade de movimentar contas bancárias, retirar-se a possibilidade de ouvir confissões, limitar-se a presença pública nas redes sociais ou enviar-se alguém para uma clínica de reabilitação de dependências são passos que raramente são aplicados. E são passos que têm de ser feitos, não apenas ditos 

O segundo problema estrutural da Igreja portuguesa é a dificuldade que existe de criticar pública e explicitamente os seus responsáveis. Dentro da Igreja, existe, em muitos lugares, uma lógica perversa de “respeitinho”, de autoritarismo, também de pequeno poder. Mas existe também, além disso, uma lógica talvez ainda mais perversa de não querer ficar mal e de não querer que se fique a parecer mal. A Igreja portuguesa é profundamente vaidosa no pior sentido do termo: não aceita que se fale mal dela, defende-se quando isso acontece, vê a crítica como ameaça e não como ocasião de purificação. Membros da Igreja nomearem em público responsáveis da Igreja que tenham falhado ou com os quais discordem não fica bem. Soa a traição ou a desrespeito. O silêncio nasce daqui, alimenta-se precisamente destas duas coisas: do receio das consequências para aquele que critica e, simultaneamente, do receio da má reputação institucional. Enquanto essas duas coisas tiverem a força e o peso que têm, estruturalmente falando, a Igreja portuguesa estará sempre sujeita à falha e ao pecado.  

A solução pouco clara e desarticulada apresentada pela CEP na conferência de imprensa que se seguiu à assembleia plenária de 3 de março é reflexo disto. Expressões vagas como “tolerância zero” ou a solução do memorial são maneiras de reparar à pressa a imagem da instituição. Porém, o que faz falta à Igreja portuguesa não são soluções apressadas. É o caminho longo e lento de poder publicamente discutir de modo explícito quais são os bispos, quais são os superiores religiosos, quais são os sacerdotes, quais são os leigos, quais são os colaboradores das obras da Igreja que desempenharam mal os seus papéis e porquê. É o caminho longo e lento de poder publicamente discutir de modo explícito quais foram os casos nos quais foram propostas soluções que tiveram sucesso ou que fracassaram. É o caminho longo e lento de poder publicamente discutir de modo explícito o que foi dito e o que não foi feito, ou o que foi dito e feito, ou o que não foi nem dito nem feito. Sem tornar absolutamente explícito o que constitui a realidade dos abusos, continuará a não ser possível mudar estruturalmente aquilo que na Igreja não é falha mas que é pecado. Só isso permitirá rezar seriamente o salmo 50, com o seu grito inicial que clama «compadecei-vos de mim, ó Deus, pela vossa bondade» e a afirmação angustiada que diz que «eu reconheço os meus pecados e tenho sempre diante de mim as minhas culpas». 

 

O DESEJO DE FAZER DA IGREJA VERDADEIRAMENTE EUTOPOS 

Há demasiado ruído em torno da realidade dos abusos. Continuará a haver. Para a Brotéria, a preocupação fundamental é que a Igreja seja, continue a ser, seja cada vez mais, um bom lugar e um lugar onde o Evangelho se viva plenamente. Acreditamos profundamente, radicalmente, que a Igreja é um eutopos e que nela se encontra verdade, serviço, humildade, mansidão, misericórdia, justiça, paz. Este não é tempo para grandes discursos. É o tempo para assumir o pecado que também nos constitui e para procurar mudar estruturalmente as condições que levaram até ele, para que possa ser superado.

 

 

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