Volume 198 — 5/6, maio-junho 2024

5€Digital8€Papel

DigitalPapel


Viriato Soromenho-Marques

A aceleração da crise ambiental e climática global está a tornar-se numa ameaça existencial para a continuidade histórica da civilização. As origens desta situação única e ameaçadora estão enraizadas na cultura desenvolvida no berço da modernidade europeia, antes da sua disseminação por todos os continentes. Trata-se de uma cultura de utilitarismo, alimentada por uma fé acrítica no desempenho ilimitado da tecnologia na transformação do mundo material. A essência utópica da Modernidade centrou-se num triunvirato, construído sobre a congruência entre o Estado soberano, o estabelecimento da tecnociência e a economia de mercado globalizada. Este triângulo de poder mercantilizou a natureza e criou uma cultura mundial fragmentária, pragmática e operativa, que nos conduziu à encruzilhada com que nos encontramos coletivamente confrontados. O Antropoceno, do ponto de vista filosófico, é o tempo da emergência de uma distopia que nasceu, não de qualquer aspeto parcelar da História Moderna, mas da realização acrítica e desmesurada da utopia moderna no seu conjunto.


José Frazão Correia SJ

A presença e o papel das mulheres na Igreja têm estado na agenda do Conselho de Cardeais do Papa Francisco. “Desmasculinizar a Igreja” é assumido como motivo para uma reflexão que escolheu dar voz a mulheres. A teóloga Lucia Vantini, com investigação em temas como a diferença e o género, foi uma delas, tendo submetido a exame crítico a teoria do duplo princípio mariano/feminino/místico e petrino/masculino/institucional, formulada nos anos setenta do século passado pelo teólogo suíço von Balthasar. Ao enorme êxito que esta teoria alcançou, com a idealização do feminino, corresponde uma efetiva agressão e exclusão das mulheres, alerta Vantini. Por isso, em vez de continuar a colocar a identidade feminina a partir de modelos arquetípicos e de princípios essencialistas, importa escutar a realidade existencial das mulheres e as suas muitas vozes, também as mais radicais. A opção tomada expõe o tipo de relação que a Igreja estabelece, de facto, com o seu contexto cultural.


Marta Saraiva

Portugal atravessa um ano politicamente intenso e incomum, com duas eleições, as legislativas e as europeias, separadas por apenas três meses e mediadas pelos cinquenta anos do 25 de abril. Esta circunstância, que resulta do acaso, convida a olhar para a quase simbiose que hoje existe entre as políticas nacional e europeia e para a omnipresença das instituições no nosso quotidiano. Quando nos aproximamos da celebração dos 40 anos da adesão de Portugal à União Europeia, é surpreendente o desinteresse pelas eleições europeias. Reconhecendo a complexidade do quadro institucional da União, e as dificuldades de posicionamento decorrentes da fragmentação das tradicionais paisagens políticas europeia e portuguesa, propõe-se um roteiro de orientação que facilite, por um lado, a participação consciente nas próximas eleições e, por outro, a leitura dos seus resultados.


José Eduardo Franco, Ana Lúcia Ferreira

Quando se celebra o cinquentenário do 25 de abril, revisita-se o pensamento democrático do Padre Manuel Antunes a partir do seu texto Repensar Portugal, publicado pela primeira vez no nº de maio/junho da Brotéria, exatamente há 50 anos. A sociedade democrática deve ser pensada, sendo a reflexão o ponto primeiro para uma ação que gere bons frutos. Importa, por isso, cultivar o pensamento crítico e inclusivo, que concilie o antigo e o novo, a emoção e a razão; que olhe para o passado prospetando o futuro. "Repensar Portugal" apresenta-se como exercício necessário, ainda mais em momentos de crise e de incerteza. O pensamento do Padre Manuel Antunes continua a oferecer um notável programa de questões e de caminhos.


Pedro Passos Coelho

Como será o futuro na União Europeia (UE)? Estaremos realmente condenados a escolher entre acelerar em direção a uma opção federalista ou ficarmos “anões” globais, numa União demasiado imperfeita que impõe um custo excessivo para manter algum equilíbrio entre as identidades nacionais? Ou continuará a haver espaço para explorar melhoramentos na nossa arquitetura institucional sem cair naqueles extremos? Esta última opção parece ser a mais realista e avisada. Se a UE não se pode alhear da evolução que o mundo vem registando, no que isso tem de ameaçador e de novas possibilidades a que abre, os riscos políticos da desconstrução europeia não se podem negligenciar em face dos voluntarismos excessivos em matéria de integração.


Rafael Àngel García-Lozano

Em 17 de dezembro de 2023, o escritor e Prémio Nobel da Literatura Mario Vargas Llosa assinou a sua última coluna quinzenal no diário espanhol El País, que mantinha desde dezembro de 1990 e cujas repercussões se estendiam ao conjunto do mundo hispanoamericano. Em outubro do mesmo ano, o escritor tinha apresentado o seu último romance, Le dedico mi silencio, e anunciado o seu último ensaio, que seria sobre o filósofo Jean-Paul Sartre. Parecia estar a despedir-se. Sem pretender fazer aqui a análise do seu percurso, toma-se como referência o seu ensaio mais próximo à temática da fé cristã, “La civilización del espectáculo”, com o propósito de colocar a questão do diálogo entre fé cristã e cultura. Pretende-se, com isso, oferecer uma leitura crente de alguns traços da realidade atual a partir do texto de Vargas Llosa.


Paulo Drumond Braga

D. Manuel II (15.11.1889 – 02.07.1932), filho mais novo de D. Carlos e de D. Amélia, foi rei de Portugal entre o assassínio do pai e do irmão primogénito, D. Luís Filipe, em 1 de fevereiro de 1908, e a proclamação da República. Estabelecido em Inglaterra, acreditou que a alteração política ocorrida em Portugal em maio de 1926 poderia ser capitalizada a favor dos monárquicos e possibilitar um regresso à situação interrompida em 1910. Tal convicção aumentou com a emergência política de Salazar, admirado por D. Manuel, que teve a habilidade de manter sempre uma ambiguidade face ao futuro: sem nunca fechar as portas a uma restauração da monarquia, não deu qualquer passo decisivo nesse sentido. Essa mesma duplicidade servia para não lhe alienar o apoio de um núcleo substancial de monárquicos, que mantiveram até tarde a esperança numa restauração.


João Maria Lourenço

Partindo da leitura de Contra toda a Esperança, Memórias, de Nadejda Mandelstam, é possível descortinar um hino de Amor sublime, um antídoto não-ficcional contra todo o desamor que nos assoberba. A obra documenta os últimos quatro anos de vida do casal, desde a primeira detenção de Óssip (1934), até à morte do poeta num campo de trânsito em Vladivostók (1938), registando a par e passo a perseguição do Estado Soviético, encabeçado por Estaline, a este enorme poeta. Nadejda sobrevive e dedica a sua vida a memorizar, guardar e copiar secretamente todos os manuscritos da obra completa de Óssip, não descansando enquanto não a vê publicada. Só então, se dedica à narração de toda esta fase solitária dantesca, que foi para si o culminar da sua missão (literária) pessoal, relacional e coletiva, através da qual manifestou e sintetizou o supremo ato de Amor da sua vida, o qual podemos tomar humildemente por modelo.


Dimensões
15 x 23,4

Nr de páginas
112

ISSN
0870–7618