Todo o direito tem o seu avesso. Mesmo os melhores – pessoas, relações, lugares, instituições – podem corromper-se. A liberdade e as extraordinárias capacidades humanas arriscam-se a degenerar em mal. Procurar e identificar bons lugares cruza-se, por isso e inevitavelmente, com um lado dramático. O artigo “Não somos invulneráveis”, de Guilherme d’Oliveira
Martins, que publicámos em dezembro de 2022, por ocasião do Dia Internacional Contra a Corrupção, gerou conversas e contactos que foram amadurecendo neste número que acabou por ser todo dedicado à corrupção e à promoção de uma cultura de integridade. Esperamos poder dar um pequeníssimo contributo para o dever comum de tornar a nossa res publica um lugar melhor. Agradecemos a colaboração de cada autor e, ao MENAC, o apoio.
Examina-se, em primeiro lugar, o papel da avareza na criação de um ambiente que favorece a corrupção da pessoa humana; analisa-se, depois, o impacto desse ethos corrupto sobre o sistema democrático. O confronto com os argumentos que Platão expõe, particularmente n’A República, sobre as fragilidades do sistema democrático, conduz à identificação das condições fundamentais que podem promover o bom funcionamento de uma democracia: cidadãos virtuosos, por um lado, e instituições justas, por outro.
O Papa Francisco defendeu, em diversas circunstâncias, que ninguém é imune à corrupção. Ela nasce no coração humano e floresce quando beneficia de uma atmosfera social complacente. Tomando este entendimento como ponto de partida, conclui-se que a prevenção da corrupção não é um fim em si mesmo e que deve estar ao serviço de um desígnio mais vasto. Torna-se, por isso, imperioso promover uma cultura de integridade, assente no reforço dos valores da cidadania, que contribua para melhorar a qualidade da democracia e propicie a boa utilização dos recursos coletivos.
Em rápida mudança, as nossas sociedades pós-modernas são marcadas pela erosão da coerência interna e da coesão social. Perante a necessidade de uma nova cultura social, a corrupção converteu-se em sismógrafo dos perfis sociais e das respetivas tensões, um teste às democracias liberais e uma forma de avaliação das políticas públicas. Como prioridade que poderá não ser aquela que é dada à luta contra a pobreza ou ao combate às desigualdades, não há governo que a não inclua nos seus programas e nas suas estratégias de prevenção e repressão. Por isso, continuar-se-á a ouvir falar de corrupção, de impunidade e de estado de urgência. Podemos esperar frutos significativos? A expectativa é moderada. Se é certo que todos os partidos políticos manifestam a sua veemente indignação contra a corrupção, tendem a referir-se, sobretudo, à corrupção dos outros.
A transparência é, hoje, um valor fundamental na sociedade e nas democracias, onde a confiança entre instituições e cidadãos é indispensável para o funcionamento sustentável das organizações, públicas ou privadas. Numa democracia liberal, é dos pilares fundamentais para a sustentação da confiança dos cidadãos nas instituições. Governos e organizações que adotam práticas transparentes reduzem os abusos de poder e corrupção e promovem uma sociedade mais justa, na medida em que permitem o escrutínio das escolhas e promovem processos mais participativos. Sendo a transparência um valor fundamental numa democracia, não é, nem pode ser, porém, um valor absoluto. Como qualquer valor, terá de ser posto em relação com outros de igual relevância no contexto. Vários desafios éticos, além dos tecnológicos, refletem a complexidade de encontrar o equilíbrio com outros valores essenciais.
Prestando atenção aos principais instrumentos legislativos, internacionais e nacionais, que se têm vindo a desenvolver na construção de um quadro legislativo e institucional apostado na prevenção e no combate à corrupção e aos crimes conexos, procura-se avaliar o real impacto que têm ou que não têm, concretamente em Portugal. Apesar das exigências inscritas em tais instrumentos legislativos, por razões de natureza cultural e corporativa, verifica-se que se trata de uma luta muito difícil e com pouco sucesso. A vontade política não é clara e a falta de recursos é uma recorrência. Como ter, então, sucesso na luta contra a corrupção? Além de um verdadeiro e efetivo investimento político e orçamental, da definição de um programa de ação, da medição da capacidade de ação dos organismos existentes e de como são entendidos pela população, será fundamental e prioritário começar por criar a consciência na comunidade de que é necessário mudar as atitudes.
Investigar a corrupção torna-se uma tarefa árdua e de resultado final, muitas vezes, inconclusivo. Mas, por mais insidioso que seja o crime na sua materialidade e por maior complexidade que tenha a correspondente investigação, o seu combate não justifica o recurso a meios que violem o universo de proteção de direitos fundamentais, tal como definido na Constituição da República e na Carta dos Direitos Fundamentais da UE. A constatação da necessidade de encontrar respostas mais aptas a investigar e a julgar a corrupção não desobriga os poderes públicos das vinculações decorrentes da vivência num Estado de Direito. Por isso, será preciso evoluir nos meios e nos métodos, concebendo passos evolutivos que concretizem soluções enquadradas na matriz civilizacional que fez da Europa Ocidental, no pós-guerra, um espaço de liberdade, de justiça e de segurança.
Na ficção ou na vida real, há múltiplos jornalistas empenhados em denunciar a corrupção. Embora não tenham um trabalho fácil nas democracias, é nas ditaduras e nas autocracias que são mais acossados. Para lidar com a grande corrupção, que recorre a esquemas internacionais cada vez mais sofisticados, jornalistas de vários países decidiram trabalhar em conjunto, beneficiando muitas vezes do trabalho de whistleblowers. O jornalismo de investigação não é praticado do mesmo modo pelos profissionais da imprensa. Em alguns casos, emergem diversos efeitos perversos, como sucede quando o jornalista se limita a esperar por uma fuga de informação ou quando cede em demasia ao espetáculo. O jornalismo que conta é o que concorre para que a boa informação ajude a produzir mudanças positivas.
Escrito “a quatro mãos” por uma vítima de abuso sexual por parte de um clérigo e pelo responsável de uma organização católica comprometida com a salvaguarda da dignidade humana e o acompanhamento de vítimas de abuso em todo o mundo, dentro e fora da Igreja, descrevem-se os frutos recolhidos dos múltiplos encontros com vítimas de abuso e apresenta-se o que se considera dever ser observado quando se trata de ir ao encontro delas. Três são as perguntas a que se procura dar resposta: como é que as vítimas sentiram o abuso e falam desse experiência?; o que deve ser tido em conta no encontro com vítimas de abuso?; como podem ser entendidas as ações conjuntas? Defende-se que, no processo de acompanhamento das vítimas e de reparação dos abusos, deve ser claramente assumido que as necessidades daqueles que foram maltratados, marginalizados e discriminados devem estar acima da imagem e da reputação da Igreja ou de qualquer outra instituição.
Dimensões
15 x 23,4
Nr de páginas
110
ISSN
0870–7618